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Este post faz parte da série “Filosofia Barata do Direito” e deve ser lido, preferencialmente, após este e este.
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Eu já havia afirmado que o raciocínio jurídico (pelo menos o meu) possui dois momentos bem distintos: o da descoberta e o da justificação.
Na fase da descoberta, o juiz/jurista irá intuir a solução que ele reputa mais justa. Esse processo, como é óbvio, é de difícil entendimento, pois, até o presente momento, ninguém consegue explicar com perfeição como funciona a mente humana, embora alguns palpites possam ser dados. Sobre isso, falarei em outro post. Aqui basta dizer que é nessa fase que a experiência, as pré-compreensões, as vivências, as circunstâncias etc. do julgador terão uma influência maior. Por isso, chamo essa fase de “feeling”. Aliás, qualquer pessoa é capaz de ter o mesmo sentimento de justiça. A diferença é que o jurista tem mais prática e um maior “background” de informações específicas sobre a solução de conflitos jurídicos e, por isso, desenvolveu um “feeling” mais aguçado.
Já na segunda fase, temos o raciocínio jurídico exteriorizado, que é, na prática, o mais importante. É o momento em que o juiz, usando toda técnica argumentativa que é peculiar da atividade jurídica, irá tentar convencer o público de que a solução por ele encontrada é a melhor possível, manifestando seus fundamentos de convicção na sentença. Trata-se, portanto, de um momento crucial para permitir o controle da racionalidade da decisão judicial e, portanto, a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico.
Pode parecer que o caminho que o juiz segue até a sentença é um caminho solitário, em que ele só consulta a sua mente e os livros (hoje, a internet). Mas não é bem assim. Na verdade, esse processo segue todas as diretrizes básicas da teoria do discurso. Trata-se, portanto, de um processo dialogal, comunicativo, onde os argumentos serão construídos junto com as partes, seus advogados e, de preferência, com a “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”. É meio exagerado achar que a sentença seria uma espécie de “consenso institucionalizado”, mas a tarefa do juiz não deixa de ser, no fundo, uma tentativa de mostrar para um “auditório universal imaginário” que a sua solução é a mais racional e a mais compatível com o ordenamento jurídico. O juiz é uma pessoa angustiada que, a toda hora, quer mostrar para o resto do mundo que está certo. E o ideal é que ele nunca perca essa vontade de se auto-legitimar constantemente. O juiz que se acha o “dono da verdade” e que fundamenta sua autoridade não nos argumentos que utiliza, mas na toga que veste, não passa de um ditadorzinho mequetrefe.
Sim, mas até aqui eu não disse nada de novo.
A função básica desse post é analisar o seguinte: que tipos de argumentos podem ou devem ser utilizados pelo juiz na fase de justificação? A lei não basta? Os precedentes não são suficientes?
É justamente nesse ponto que meu pensamento se distancia da grande maioria dos filósofos do direito e se aproxima mais da metodologia adotada pelas chamadas “ciências nobres”. Creio que o papel do juiz/jurista deve ser semelhante à atividade de um cientista (no sentido mais estrito do termo). Ele deve construir uma hipótese e submeter essa hipótese a testes empíricos de justificação (são os testes de falseabilidade ou de refutação). E aqui vale todo tipo de argumento: psicológico, sociológico, genético, médico, econômico, matemático, físico etc.
Só não vale apelar para os búzios, para os duendes, para os astros, para os dados, para o cara ou coroa, para os espíritos ou para uma força divina qualquer. Sejamos racionais.
Sim, mas e a lei? E os precedentes?
A lei e os precedentes ocupam um papel especial dentro desse esquema de justificação. Eles não são um mero tópico argumentativo (topos). Eles são o principal topos jurídico. São os topoi jurídicos por excelência.
Na grande maioria das vezes (99,99999%), eles serão suficientes para embasar a decisão judicial. O juiz vai ser legalista/formalista na maior parte de sua vida, quer queira quer não queira. Isso porque eles (os precedentes e a lei) se apresentam como soluções que já passaram por um processo de descoberta e justificação anterior. Uma lei é, numa visão ideal, uma solução apresentada por um grupo de pessoas que, em dado momento histórico e após um amplo debate democrático, intuíram que aquela norma era justa e conseguiram convencer outras pessoas de que aquela regra mereceria se transformar em lei obrigatória para a população em geral. O mesmo se pode dizer dos precedentes: eles corporificam soluções que já passaram por um longo processo de descoberta e justificação. Por isso, merecem ser, em princípio, seguidos e obedecidos pelos demais membros da comunidade (vale ressaltar: muito mais pelos argumentos neles contidos do que pela “autoridade” do tribunal que os emanou).
A lei e os precedentes são argumentos tão fortes que, na maioria dos casos, são auto-suficientes para justificar a decisão judicial. Aliás, no fundo, eles são instrumentos pragmáticos desenvolvidos para facilitar a argumentação jurídica. Num passado bem distante, lá nas fases áureas do Império Romano, a atividade dos magistrados era excessivamente casuística, obrigando o juiz a criar argumentos específicos para cada caso concreto. Com a Revolução Industrial e a conseqüente massificação da sociedade (e o positivismo teórico que lhe deu suporte), essa busca da “solução específica para cada caso” tornou-se inviável. Daí a criação de códigos minuciosos para mecanizar a atividade do juiz e acelerar a solução institucional dos conflitos. A lei, portanto, não é apenas um instrumento de limitação da atividade judicial, mas sobretudo, na perspectiva do juiz, uma ferramenta para lhe ajudar a encontrar a melhor solução para o caso a ele submetido e facilitar a fundamentação da sua decisão. (Sobre esse tema: HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milénio. 3a ed. Forum da História: Europa-América, 2003).
Creio que a aplicação mecânica da lei nunca vai perder a sua importância prática. Ela economiza o tempo, possibilita uma estabilização das relações sociais e a previsibilidade dos resultados. Além disso, através da aplicação isonômica da regra, favorece a Justiça.
Por isso, o juiz deve ser (e é) legalista na maioria dos casos, mesmo quando se considera como um juiz “alternativo”. Por exemplo, se o seu “feeling” coincidir com a resposta legal ou com a resposta dada por precedentes judiciais, basta ele invocar esses argumentos para justificar a sua decisão. Essa situação é talvez a mais comum de todas, já que o sentimento de justiça do juiz, em virtude de sua educação acadêmica, costuma estar intimamente conectado com os valores que emanam do ordenamento jurídico. Do mesmo modo, quando ele não é capaz de “captar” qual a solução que, na sua ótica, seria a mais justa (essa situação é mais freqüente do que se imagina), o juiz sabe que o melhor é seguir o que diz as leis e os precedentes, pois certamente a sua observância trará mais vantagens do que desvantagens. No mesmo sentido, quando o seu “feeling” não coincide com a solução dada pelo legislador ou pelos tribunais, mas ele não consegue encontrar argumentos capazes de, objetivamente, justificar o seu ponto de vista, o melhor é seguir a lei e os precedentes, pois são argumentos fortes que só podem deixar de ser observados quando forem encontrados argumentos mais fortes ainda. Dito de outro modo: o juiz deve ter humildade para deixar de observar o seu “feeling” quando não encontrar argumentos razoáveis capazes de sustentá-lo.
As situações acima são as mais freqüentes no dia a dia de um juiz. Em todas elas o juiz estará vinculado à lei e aos precedentes e cumprirá o seu papel de “boca da lei” de muito bom grado.
Raras são as situações em que o “feeling” do juiz não coincide com o da lei ou dos precedentes e ele é capaz de encontrar argumentos suficientemente fortes para deixar de segui-los. E o curioso é que, apesar de ser uma situação bem rara, é justamente sobre ela que a grande maioria dos teóricos se debruçam. Afinal, o juiz pode deixar de aplicar uma lei ou um precedente se não concordar com o seu resultado?
Penso que sim, mas, nesse caso, o juiz deve apresentar argumentos muito fortes para justificar sua decisão. Hoje em dia, a teoria jurídica aceita dois hipóteses básicas capazes de justificar essa postura de não-aplicação da lei: (a) o juiz pode deixar de aplicar a lei quando ela não é compatível com a Constituição; (b) o juiz pode deixar de aplicar a lei quando ela não for proporcional.
Como as normas constitucionais são muito abertas, no fundo, o juiz sempre será capaz de encontrar na Constituição um argumento para deixar de aplicar uma lei ou um precedente que julgue injustos. A positivação constitucional dos valores éticos (igualdade, liberdade, solidariedade, dignidade da pessoa humana) municiou o juiz de argumentos retóricos para qualquer resposta que queira encontrar. Já se afirmou, ironicamente, que a Constituição é como um grande supermercado, cujas prateleiras estão repletas de produtos para todos os gostos, a serem adquiridos conforme as preferências de cada cliente.
Do mesmo modo, o princípio da proporcionalidade – especialmente a proporcionalidade em sentido estrito – é muito amplo e, de certo modo, subjetivo, permitindo ao juiz agir com muita liberdade decisória, especialmente quando mal manejado. Isso dá margem à famosa Katchanga.
É por isso – para tentar evitar as katchangadas – que tento equiparar a atividade do juiz à atividade de um cientista.
Não é uma postura científica se conformar com argumentos meramente retóricos. Dizer que uma lei viola a dignidade da pessoa humana ou a proporcionalidade e, por isso, é inconstitucional, não é suficiente. É preciso apontar, objetivamente, qual o defeito grave da lei capaz de justificar a sua não-aplicação.
Esses argumentos devem ser essencialmente empíricos e, de preferência, devem ser encontrados fora do estrito mundo das normas, já que o direito, hoje em dia, não oferece respostas precisas, até porque não consegue acompanhar a evolução dos problemas sociais. O juiz deve ouvir argumentos de todos os lados possíveis e imagináveis e utilizá-los tal como um cientista faria. É aqui que entra a idéia de dever de consistência, que mencionei no meu “Curso de Direitos Fundamentais”. Mesmo assim, por paradoxal que possa parecer, não é possível aceitar uma decisão judicial que se afaste das diretrizes constitucionais. A Constituição deu uma liberdade ampla de decisão, mas não uma margem decisória ilimitada. Existem limites constitucionais e esses necessariamente devem ser observados.
A idéia básica, que inspira a metodologia acima sugerida, é que o direito é um processo experimental que evolui. As leis, as sentenças, as normas de um modo geral são regras experimentais que podem funcionar ou não. Daí a adoção do critério de adequação ou de necessidade como pressuposto da proporcionalidade da lei, por exemplo. Analisar a proporcionalidade nessa dupla perspectiva (adequação e necessidade) nada mais é do que verificar a racionalidade (ou cientificidade) do objeto analisado.
Quem me despertou para esse tipo de pensamento não foi um filósofo do direito, mas Carl Sagan. Tudo bem que ele, como cientista que é, talvez não seja a fonte doutrinária mais autorizada para falar de direito. Mas por ter uma visão global (melhor dizendo: cósmica) das coisas, ele acaba saindo com umas tiradas bem interessantes que podem ajudar o jurista a pensar melhor no ordenamento jurídico. Eis o que ele diz no livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios”, lá no capítulo “Os verdadeiros patriotas fazem perguntas”:
“Os métodos da ciência – com todas as imperfeições – podem ser usados para aperfeiçoar os sistemas sociais, políticos e econômicos, e isso vale, na minha opinião, para qualquer critério de aperfeiçoamento que se adotar. Mas como é possível, se a ciência se baseia em experimentos? Os humanos não são elétrons, nem ratos de laboratório. Mas todas lei do congresso, toda decisão da Suprema Corte, toda diretriz presidencial de segurança nacional, toda mudança na taxa de juro preferencial é um experimento”.
Creio que seja por aí. Acho que o papel do juiz é fazer conjecturas e refutações, dentro do que permite o ordenamento jurídico-constitucional, para encontrar soluções que possam proporcionar o desenvolvimento humano. A lei e os precedentes não devem ser encarados, nesse processo, como meros topoi argumentativos como outro qualquer. São, isso sim, os critérios decisórios mais importantes, já que eles representam soluções de sucesso encontradas durante um determinado momento histórico. O juiz só pode deixar de segui-los quando estiver absolutamente seguro de que a solução por eles oferecidos não é a melhor possível diante de novas descobertas e de novas informações obtidas posteriormente. Para isso, o juiz deve seguir fielmente a metodologia oferecida pelos testes de proporcionalidade e deve voltar atrás quando perceber que a solução por ele dada não atingiu as finalidades imaginadas. O direito é um experimento constante. O que funciona – ou seja, o que proporciona o desenvolvimento humano – merece ser incentivado.
Quem sabe não é por esse caminho que o direito alcançará o tão desejado reconhecimento de sua cientificidade?
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Reafirmo que não há nada de original nas idéias acima. Eu poderia citar uns cem juristas e filósofos que já defenderam as mesmas idéias com outras palavras. Por que não os cito? Em parte, por preguiça. Mas a principal razão é que não os li.
No livro “Metodologia da Ciência do Direito”, Karl Larenz cita vários autores que pensam semelhante. Pretendo lê-los um dia para dar um reforço de autoridade à minha “filosofia barata do direito”. Enquanto isso, vou escrevendo o que vêm à minha cabeça. Pode-se dizer que ainda estou na fase do “feeling”… :-)
Aliás, devo fazer uma confissão. Já faz um tempo que desejo aprender a ler em Alemão. No início, a idéia era apenas para fazer média. Afinal, os grandes autores do direito constitucional são alemães e no Brasil quem não fala alemão tem sido colocado para o escanteio pela “comunidade jurídico-constitucional”. Acabei desistindo da idéia, pois acho que a vida é muito curta para aprender tão difícil língua. Sinceramente, têm tantos livros bons em inglês, italiano, espanhol e português que eu jamais conseguiria ler todos antes de partir para o alemão.
Hoje, me arrependo. Há muitos livros bons – especialmente na filosofia e no direito constitucional – que só têm em alemão. Tento suprir minha deficiência linguística lendo a versão espanhola, portuguesa, italiana ou inglesa desses livros, mas não é a mesma coisa. Primeiro, porque sempre tem um texto importante que não foi traduzido. Segundo porque se perde muito com a tradução.
Talvez eu aproveite esse período na Europa para tentar aprender o alemão, pelo menos para leitura. Vou pensar. Por enquanto vou ler os mais de cem livros – em espanhol, português, inglês e italiano – que estão na fila que fiz…
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Três observações para uso posterior:
1 – A incapacidade do direito de oferecer respostas mais precisas se apresenta não apenas com a abertura dada pelo texto constitucional, mas também pelo uso deliberado de princípios vagos pelo próprio legislador, que, ciente de que é incapaz de oferecer respostas minunciosas sobre cada conflito possível e imaginável que possa acontecer, preferiu desenvolver princípios jurídicos para que o juiz decida com maior liberdade o caso concreto em busca da solução mais justa.
2 – Nem a decisão judicial nem a lei jamais serão “justas” no sentido filosófico do termo, já que o conceito de justiça é um conceito utópico e jamais alcançável. É o mesmo conceito de “verdade” utilizado pelos cientistas: ou seja, sempre uma meta a ser alcançada, mesmo sabendo que é impossível. Parafraseando o poeta Vicente de Carvalho, pode-se dizer que a utópica justiça que supomos e que sonhamos, existe sim; mas nós nunca a alcançamos, pois ela sempre está a um passo de onde nós estamos.
O máximo que o juiz pode e deve fazer é tentar se aproximar dessa justiça utópica.
Mas essa impossibilidade de ser absolutamente justo, não significa que a injustiça não possa ser demonstrada e evitada. O justo é utópico; mas a injustiça não. O método científico, acima recomendado, serve justamente para afastar da decisão judicial todas as soluções que se distanciem do conceito de justiça. O juiz tem o dever de tentar se aproximar da justiça ideal, mas tem uma obrigação muito maior de se afastar da injustiça concreta. Então, pode-se dizer que o papel maior do juiz não é nem tanto alcançar a justiça, mas sobertudo evitar a injustiça do caso concreto.
3. O juiz não pode ser inconseqüente e julgar conforme suas preferências pessoais mesmo sabendo que elas não se sustentam. Não significa que ele precisa seguir como carneirinho tudo o que estiver pacificado na jurisprudência. Se o juiz acha que possui argumentos suficientes para alterar a jurisprudência consolidada, ou seja, se ele acredita que sua sentença irá ser confirmada nas instâncias recursais, ele deve mesmo seguir sua consciência e aumentar a carga argumentativa de seu ponto de vista para tentar convencer as outras pessoas que aquela é a melhor solução.
George,
O prazer da leitura por mim só foi descoberto recentemente, há cerca de uns 4 ou 5 anos. Existem livros em Alemão que eu gostaria de ler, sobretudo literatura, e em especial Goethe, mas ainda não posso. Me espelho em Machado de Assis, que aprendeu sozinho este idioma aos 50 anos de idade. Só espero que ele não tenha começado a aprender com 20 ou 30 anos.
De fato a lógica argumentativa baseada em precedentes e na Lei (ai incluída a Lex Legum) torna a atividade justificante muito mais cômoda. Entretanto, estou convencido de que, por não existir distinção de natureza lógica entre regras (suposto juízo de validade ou invalidade) e princípios (confrontação para ponderação), a fundamentação justificante alicerçada nos princípios deve ser muito mais exautiva do que o seria com base em uma regra, pois se flexibiliza a aplicação de um lado, recrudesce o sistema de verificação da aplicação. Também eu até aqui não disse nenhuma novidade, de sorte que, em assim não agindo, o julgador da margem a “Katchanga”.
Nesse sentido, o professor LOPEZ, José Reinaldo de Lima. , (Juízo jurídico e a falsa solução dos princípios e das regras. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 40 n. 160 out./dez. 2003) já dissera:
“À idéia de que aplicar regras é diferente de aplicar princípios quero contrapor a idéia de que aplicar regras e aplicar princípios é algo semelhante. Aplicar regras ou princípios práticos (que incluem preceitos ou máximas de moral ou de direito) é perfeitamente diferente de tirar conclusões de princípios matemáticos. A tarefa desta seção é mostrar,
portanto, em que consiste o juízo jurídico e, apenas por contraste, em que consistem os juízos das ciências formais (a matemática e a lógica no sentido estrito). Em seguida, será possível concluir que aplicar regras ou princípios é, do ponto de vista do pensamento, a mesma coisa e que, portanto, dividir o sistema jurídico em regras e princípios não elimina em nada as dificuldades do processo de deliberação.”(op. cit. p. 50)
E continua, e aqui peço desculpas por ser uma citação longa, mas que tem um ponto de vista que não pode ser simplesmente descartado, que se refutado for, merece uma construção empírica adequada, no sentido de que:
“O juízo pode ser tanto a própria faculdade de escolha e de distinção, quanto a operação intelectual de síntese (ABBAGNANO, 2000). Por isso diz-se que alguém tem juízo e realiza juízos. O juízo (operação) consiste em
uma predicação e se expressa em uma proposição. Isso é o básico. Há, porém, juízos normativos (predicações normativas, proposições normativas, preceitos, máximas) e há juízos assertóricos (proposições afirmativas ou negativas sobre o que é). Para ambos os casos, porém, é preciso que haja sujeitos.
Não há juízos sem sujeitos. Uma língua não produz falas por si, como não produz discursos por si mesma, assim como um sistema normativo não produz decisões por si mesmo. A língua é apenas o instrumento dos juízos1. O ordenamento é apenas o meio ou a condição para decisões. Logo, predicar é ato de sujeitos. Os sujeitos predicam (dizem o mundo) de várias maneiras. Há predicações completamente formais, ou de objetos
ideais, como é o caso das predicações das matemáticas e da lógica. Essas predicações que se transformam em juízos são simples e devem ser entendidas por quem vai falar de matemática ou de lógica. O que é
uma reta, ou que é o espaço, o que é um algarismo ou o que é a unidade? São coisas (conceitos) básicas que permitem os discursos.
Essas coisas, uma vez inteligidas, permitem que delas se derivem outras coisas pelo raciocínio ou silogismo: passar do que sei ao que não sei, apoiando-me no que sei. O problema é que nas matemáticas e na lógica o
que sei tem uma natureza especial: trata-se de objetos ideais – não empíricos – que permitem o pensamento abstrato. “Não existem triângulos na natureza”. O objeto do pensamento não são as coisas empíricas,
mas essas relações entre as coisas, que se convertem nas matemáticas.
Um bom ponto de partida para entenderse o juízo, a despeito das muitas discussões sobre o caso, é ainda a definição
kantiana:
“A faculdade do juízo em geral é a
faculdade de pensar o particular como
contido no universal. No caso de este
(a regra, o princípio, a lei) ser dado, a
faculdade do juízo, que nele subsume
o particular, é determinante. (…) Porém,
se só o particular for dado, para
o qual ela deve encontrar o universal,
então a faculdade do juízo é simplesmente
reflexiva” (KANT, 1995, p. 23).
Certas confusões fazem crer que o jurista, ao deparar-se com um caso, faz um juízo apenas determinante. É claro, porém, que ele se envolve em juízos reflexivos, ou seja, em que, dado o fato, procura o universal (regra)
ao qual submetê-lo. Ocorrida uma morte, por exemplo, procura, por investigação das circunstâncias, saber se se trata de acidente ou homicídio, de morte em legítima defesa ou qualquer outro tipo, que exclui a pena imposta ao homicida. Isso é, na verdade, fazer um juízo.
Ora, no que diz respeito ao juízo jurídico, temos uma situação bastante especial. Alguns dirão que na prática do direito é preciso distinguir os juízos de fato dos juízos de direito, ou seja, as predicações dos fatos (se
isto ocorreu, ou se isto ocorrer) das predicações jurídicas (valerá isto, será considerado lícito ou ilícito). A situação é ligeiramente mais complexa, mas é um bom começo. Essa simplicidade é muito aparente. No
juízo jurídico, trata-se sempre de qualificar uma situação de fato. Ou se qualifica um fato específico, no processo de adjudicação, ou se trata de criar tipos de fatos que serão qualificados no futuro. Mais ainda, quando
se trata de qualificar um fato qualquer passado – na decisão judicial –, esse fato tem que ser convertido em um tipo. É da essência da regra que ela se refira a tipos: a aplicação de uma regra concreta é reconhecimento
que o fato específico é um fato dentro de uma classe, classe essa descrita por alguma regra.
Quando alguém se pergunta pela licitude ou pela legalidade de uma conduta ou de um estado de coisas, está deliberando o que fazer naquele caso e em todos os casos semelhantes (segundo regras), exercendo
um juízo prático. Ora, na maioria das vezes a dificuldade não está em saber a regra, mas saber se o fato sujeita- se a uma regra e não a outra.
Isso acontece da mesma forma quer se trate de aplicar uma regra ou um principio. Dizer que um fato se submete a um princípio significa dizer que se submete a uma espécie de norma e para submeter-se a uma espécie
de norma é preciso tipificá-lo.
O exemplo de que trata DWORKIN (1986, p. 15 et seq.) é ilustrativo. Ali o caso diz respeito a um herdeiro ou legatário que, visando receber sua herança, mata o testador. DWORKIN questiona como o tribunal encarregado do caso deveria proceder. A despeito do assassinato, o testamento continuaria válido e, portanto, o assassino viria
finalmente a beneficiar-se de seu ato ilícito?
Bem, no direito romano-canônico de distintos países europeus, latino-americanos ou asiáticos, a hipótese é tratada tradicionalmente
em regras específicas (no Brasil o caso já era previsto no Código Civil de
1916, art. 1.595, I, e continuou previsto no Código Civil atual no art. 1.814, I). O tribunal citado por DWORKIN, à falta da regra expressa no direito americano, resolveu aplicar um “princípio”: o testamento deveria ser invalidado para que o assassino não se beneficiasse de seu ilícito (regra também tradicional no direito romano: “nemo ex suo delicto
meliorem suam conditionem facere potest”).
DWORKIN afirma que a diferença entre o principio aplicado (ninguém pode invocar a seu favor a própria torpeza) e as regras explícitas sobre o testamento está em que o princípio seria aplicado por ponderação e a regra seria aplicável por um juízo mais simples, do tipo: a norma é válida e, pois, aplicável, ou a norma é inválida e, pois, inaplicável.
Não é isso o que de fato ocorre.
Na verdade, tanto regras quanto princípios para serem aplicados dependem de algo mais: trata-se daquilo que muito acertadamente
Karl ENGISH (1979) chamava de “construção da premissa menor”. Essa premissa menor é aparentemente apenas a descrição de um fato. O raciocínio jurídico seria esquematicamente o seguinte: Premissa maior
= norma (matar alguém – pena de 20 anos de reclusão); premissa menor = fato (A matou B); conclusão (subsunção) = A sofrerá a pena. ENGISH destaca com relevo que a premissa menor nunca é dada pura e simplesmente para o jurista.
Ela deve ser construída e para isso serve, por exemplo, o processo
judicial, para estabelecer o juízo contido na menor (A matou B). Ora, nesse juízo aparentemente simples, o que está em jogo verdadeiramente é um juízo (predicar que A matou B) e esse juízo tem um caráter constitutivo e não meramente descritivo. Quando se diz que A matou B, em termos jurídicos, diz-se que A matou B no sentido que interessa
para a lei. Assim, pode ser que de fato um ato de A tenha causado imediatamente a morte de B, mas esse ato pode ter sido praticado em legitima defesa, ou B pode ser tido como incapaz, ou qualquer outra
circunstância pode ter ocorrido.
Nesses casos, a afirmação fática A matou B não significa que A matou B no sentido da lei penal. Logo, apesar de um ato de A ter provocado a
morte de B, a conclusão final do juízo será que A não matou B no sentido legal, logo A não sofrerá pena alguma.
É isto que ENGISH (1979, p. 70) esclarece:
“Se agora procurarmos a fundamentação
da concludência na heurística
jurídica, verificamos que o centro
da gravidade desta fundamentação
reside na chamada premissa menor –
no nosso exemplo, portanto, na proposição:
‘A é assassino’. (…) Para a
natureza da menor, é indiferente que
a maior seja concebida como categórica
ou hipotética. Na menor se acha a
já muitas vezes mencionada subsunção.
Mas não só nela. Pois que, em regra,
com ela se encontra estreitamente
conexa uma verificação de factos, isto
é, dos factos que são subsumidos. A
proposição: ‘A é assassino’, contém, pois,
tanto a verificação de que A praticou aquilo
que, do ponto de vista jurídico, é assassinato,
como ainda o enquadramento dos
factos verificados no conceito jurídico de
assassinato” [ênfase minha].
O mesmo problema é apontado por MACCORMICK (1995, p. 92 et seq.) ao dizer que o juízo jurídico lida com fatos primários e fatos secundários. Diz ele que há problemas de fatos primários no que diz respeito
à reconstrução de eventos.As pessoas podem aceitar que existe uma lei sancionando o adultério, diz o seu exemplo. Podem, porém, discordar (a) sobre os eventos, sobre se A realmente cometeu algum dos atos que
constituem o adultério. Nessa fase, discutese a reconstrução dos eventos passados.
Além disso, as pessoas podem até concordar em que certos atos foram praticados ou certos eventos ocorreram, mas discordam (b) da sua “classificação” dentro do tipo (ou da classe) a que se refere a lei. Nesses termos, o julgador fica diante de uma questão de fatos secundários, ou seja, a respeito de saber se os fatos ocorridos são fatos que contam para a regra (que chama de questões de classificação). E na mesma fase podem surgir dúvidas (c) quanto à extensão dos termos
da lei (o que chama de questões de interpretação). Mesmo assim, ele reconhece que não há nenhuma distinção lógica real (genuine) entre os problemas de classificação e de interpretação (p. 95). Um juízo de classificação e um juízo de interpretação são logicamente a mesma coisa.
Classificar significa dizer que certo fato, evento, conduta ou indivíduo
está contido em uma classe definida em uma regra; interpretar significa dizer que a classe (o termo referente à classe) inclui um fato, evento, conduta ou ser que se apresenta diante do sujeito. Pontes de MIRANDA (1970) também chega ao ponto central da questão, quando trata da aplicação do direito. É necessário determinar os fatos, saber se aconteceram ou não. É preciso também “definir” os fatos, ou seja, determinar o sentido da norma, sua extensão e significado para saber do que trata.
Finalmente, diz ele, é preciso “classificar” o fato, ou seja, saber se é da classe dos fatos determinados pela norma, ou, na sua linguagem, se a norma incide sobre os fatos. “Quando o suporte fáctico suficiente
ocorre, a regra jurídica incide; e conduta humana, de tal maneira que
trate o fato como se não houvesse incidido a regra jurídica, leva a duas
operações indicativas de suma importância para a vida: a) a da definição
do fato ou fatos componentes do suporte fáctico, e prova de que
esse ocorreu; b) a da sua classificação segundo a regra jurídica, a respeito
da qual alguém procede como se ela não houvesse incidido. As
duas operações são o essencial da aplicação do direito.”(p. 17)
Muito embora Pontes de MIRANDA afirme que a generalidade não é uma característica essencial das leis, mas apenas o fruto da evolução humana, quando explica o que se passa no pensamento jurídico não se recusa a dizer que as normas são, normalmente, gerais e que descer da sua generalidade abstrata para sua aplicação concreta é o que cria o fato jurídico propriamente dito. A abstração da lei trata os fatos como classes
de fatos, ainda que haja classes de um fato só, a classe do fato sozinho.
“Para que os fatos sejam jurídicos, é preciso que as regras jurídicas – isto
é, normas abstratas – incidam sobre eles, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os ‘jurídicos’. Algo como a prancha da máquina de
impressão, incidindo sobre fatos que se passam no mundo, pôsto que ai os
classifique segundo discriminações conceptuais. Só excepcionalmente a
lei cogita de um só caso, sem que êsse caso seja, sozinho, a sua classe.” (MIRANDA, 1970, p. 6).
“A incidência das regras jurídicas
é sôbre todos os casos que elas têm
como atingíveis. Nesse sentido, as regras
jurídicas são de conteúdo determinado,
e não se poderia deixar ao
arbítrio de alguém a incidência delas,
ou não. A regra jurídica distingue-se,
pois, da arbitrariedade; e a aplicação
mesma não pode ser arbitrária, pôsto
que possa ser, de iure condito, errônea.”
(MIRANDA, 1970, p. 6).
Em sentido semelhante, acrescenta que as regras jurídicas incidem sempre sobre todos os casos. Os casos, porém, não são os
fatos, pois são uma conceitualização contida nas regras, como visto acima. Ora, pode dar-se um problema na aplicação da norma. A esse problema, Pontes de MIRANDA chama de aplicação injusta, que decorre (1)
de interpretação inesperada, ou (2) de classificação inadequada do fato.
“A causação, que o mundo jurídico
prevê, é infalível, enquanto a regra
jurídica existe: não é possível obstarse
à realização das suas conseqüências;
e a aplicação injusta da regra jurídica,
ou porque se não haja aplicado
a regra jurídica, com a interpretação
que se esperava, ou porque não se tenha
bem classificado o suporte fáctico,
não desfaz aquele determinismo: é
o resultado da necessidade prática de
se resolverem os litígios, ou as dúvidas,
ainda que falivelmente; isto é, da
necessidade de se julgarem os desentendimentos
à incidência.” (MIRANDA, 1970, p. 18).
Ora, tanto regras quanto princípios defrontam-se com classificação ou interpretação. Falar que um legatário que assassina o testador é um caso de uso da própria torpeza em benefício próprio, que é violação da
regra básica da boa-fé, impõe tanto no caso de um princípio, como no caso da regra, um juízo. Evidentemente há regras mais específicas
e regras menos específicas, mas sempre é necessário verificar (realizar um juízo de classificação) a pertinência do caso à classe.
É por isso que diversas vezes MACCORMICK (1995) nega que os princípios sejam essencialmente diferentes das regras. O uso da analogia, diz ele (p. 155), existe sempre nos juízos sobre fatos ou indivíduos, já que
a analogia no direito é usada para levar a uma decisão em casos em que a regra não é expressamente aplicável. Dizer que regras se aplicam tudo-ou-nada e princípios se aplicam por ponderação é, na verdade, usar
a palavra ponderação e peso de forma meramente metafórica. Os princípios são apenas regras mais gerais. E essa observação de MACCORMICK, que é um escocês, portanto familiarizado com a maneira de pensar do sistema de direito romano-canônico, esclarece por que desde sempre nessa nossa tradição sabe-se que a falta de uma “regra’,
nos termos de DWORKIN, sempre permite a aplicação de um “princípio”, ou seja, uma outra regra mais geral ou mesmo pressuposta.
Tanto as regras como os princípios dependem também de determinações de sentido que não se podem dar senão em circunstâncias específicas. Esse processo de tensão entre as normas, por definição (e não por
acidente) genéricas, e os fatos, por definição (e não por acidente) específicos, faz com que o sentido das regras se defina ao longo de
sua aplicação. Esse processo dá-se com qualquer norma, ou seja, tanto no caso de princípios quanto no caso de regras (os termos usados por DWORKIN).
Richard HARE (1996, p. 62-66) esclarece justamente esse ponto quando diz que os princípios que podem ser ensinados têm caráter provisório
(e geral, digo eu) que vai-se estabelecendo à medida que se vão aplicando. A aplicação dos princípios gera sua especificação. HARE
usa a palavra princípio para abranger as regras e os princípios de Dworkin, ou seja, os comandos, preceitos ou máximas práticas.
“Todas as decisões, exceto as que
são completamente arbitrárias, se é
que existem, são, em certa medida,
decisões de princípio. (…) Suponha
que temos um princípio para agir de
certa forma em determinadas circunstâncias.
Suponha, depois que nos deparamos
em circunstâncias que se
enquadram no princípio, mas que têm
determinadas características peculiares,
não encontradas antes, que nos
fazem perguntar ‘Pretende-se realmente
que o princípio abranja casos
como este ou ele está especificado incompletamente
– temos um caso pertencente
a uma classe que deve ser tratada
como excepcional?” (HARE, 1996, p.
68) [ênfase minha].
A aplicação – ou seja, a decisão segundo normas, preceitos, máximas, regras ou princípios – é sempre uma especificação. Não pode ser diferente, já que regras ou princípios são sempre genéricos, relativos a classes e tipos e não relativos a eventos e indivíduos singulares (ou não seriam regras) (cf.WITTGENSTEIN, 1991, p. 87, 92, parágrafos
199, 224-225).
A generalidade da lei impõe necessariamente que nos casos individuais
haja um esforço de determinação, mas de determinação não arbitrária, senão outra vez por princípios. É por isso que a decisão (por eqüidade) no caso é “uma espécie de justiça”, diz ARISTÓTELES (1973), consistente
em aplicar, nos casos de indeterminação da lei, aquilo que o legislador faria se estivesse no lugar do julgador . E é isso exatamente que o Código Civil suíço manda o juiz fazer em caso de lacuna: preenchê-la como se fosse o legislador, isto é, aplicando preceitos que estejam em consonância com o restante da legislação.
Esse processo de determinação das circunstâncias é que me parece ser exatamente o mesmo tanto para as regras quanto para os princípios. Em outras palavras, o recurso aos princípios não elimina o trabalho mental exigido para a aplicação das regras. E as regras não se aplicam tão claramente da forma tudo-ou-nada. Uma regra pode perfeitamente ser válida, ser levada em consideração pelo julgador e ser afastada em
um caso concreto porque os fatos – as circunstâncias – que são transformados em premissa menor não se consideram do tipo ou da classe prevista na regra. Isso mesmo pode acontecer quando se tratar de princípios: são os fatos e suas circunstâncias que vão determinar se um princípio é o adequado para a solução do caso. Logo, não se pode simplesmente dizer que os princípios podem chocar-se sem que seja necessário retirá-los do ordenamento enquanto as regras não podem chocar-se. Trata-se, a meu ver, de afirmação imprecisa. O choque ou contradição das regras deve ser resolvido em primeiro lugar pela investigação dos fatos. Determinadas as diferenças entre os casos, as regras aparentemente contraditórias convivem no ordenamento
porque seus âmbitos de validade material são distintos. Convivem aplicando-se a objetos diferentes. Ocorre, porém, que é necessário
saber se os casos que estão sob apreciação são os mesmos ou não. O juízo sobre o caso – o juízo da premissa menor – é, portanto, o objeto central da controvérsia jurídica.
E a solução dessas controvérsias não é dada saltando-se de regras para princípios. No exemplo dado por DWORKIN, o princípio aplicado para anular o testamento – ninguém pode valer-se de sua própria torpeza
– foi usado no lugar de outro princípio: o de que as disposições válidas (os atos jurídicos perfeitos) devem ser executadas.
Mas o que fez que se afastasse um princípio em lugar de outro? Foi a construção da menor: foi a determinação dos fatos, do fato básico que estabeleceu que o legatário havia assassinado o testador. Ora, realizar esse juízo tem exatamente a mesma natureza de qualquer outro juízo a respeito de qualquer fato que se submeta a decisão jurídica.
O juízo de subsunção, tão típico do direito, é tão problemático quanto qualquer juízo. Trata-se sempre de considerar ou subpor um caso individual a um tipo geral.
Subsunção “é o enquadramento da situação concreta na classe dos casos” (ENGISH, 1979, p. 78). A subsunção “fundamenta-se na equiparação do novo caso àqueles casos cuja pertinência à classe já se encontra assente”
(ENGISH, 1979, p. 79). Isso é típico de qualquer juízo. Reconhecer uma mula quando se vê uma e chamá-la adequadamente de mula é problema dessa natureza: é inserir um indivíduo em uma classe.
Há, claro, uma diferença importante no direito: o fato concreto (individual) já é em si, não poucas vezes, um fato de natureza normativa. Saber da validade de um testamento não é saber da existência de uma
mula: a mula tem uma existência factual diferente da existência factual do testamento. O fato jurídico é sempre um fato instituído. Uma convivência entre homem e mulher não é necessariamente uma forma de matrimônio: fatos instituídos requerem a existência de normas e de intenções cristalizadas em normas. O matrimônio tem existência conexa aos fatos, mas também distinta dos fatos da pura convivência. Uma outra diferença
é que a criação de fatos jurídicos (institucionais e normativos) dá-se por meio de ação humana ou pelo menos de interpretação humana das ações alheias ou dos fatos. Diferentemente das coisas que existem fora dos sujeitos, os fatos jurídicos são interpretações de fatos.
Fazer juízos de fato sobre fatos jurídicos é, pois, algo semelhante a qualquer juízo, ou seja, é adequação do singular ao universal, do indivíduo à classe, e é também algo diferente, pois tanto o indivíduo quanto a
espécie têm natureza prescritiva e interpretativa, antes que exterior ou factual simplesmente. Ora, o juízo de subsunção de um caso tanto a uma regra quanto a um princípio é semelhante. Trata-se de um juízo normativo
ou prescritivo em qualquer dos casos.” (op. cit. p. 50/56)
Nesse sentido, pertinente a verificação acerca da diferença entre as regras e os princípios, que embasam precedentes judiciais e estão contidos na Lei ao bel labor de quantos os interpretarem. Nesse caso, outro problema pertinaz (se é que é um problema realmente) é a questão da moral do intérprete coletivo, que irá ser irradiada por suas interpretações/aplicações das normas do Ordenamento.
As obras mencionada pelo articulista acima mancionado, são as seguintes:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores).
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de V. Rohden e A. Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1986.
ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 5. ed. Lisboa: Calouste Goulbenkian, 1979.
HARE, Richard. A lnguagem da moral. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
MAcCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. Oxford: Oxford Univ. Press, 1995.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, v. 1.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
Esse livro é fantástico! Se fosse pra citar alguma frase dele que até hoje me acompanha seria algo como: “o importante não é aceitar o argumento da autoridade, mas sim a autoridade do argumento”. Não lembro em que capítulo do livro ele trata disso, mas é uma boa técnica para aprender a ler textos – jurídicos ou não – de forma mais crítica, o que às vezes é bem difícil, quando se observa de onde aquele texto vem. No mais, Carl Sagan é realmente fantástico.
Um amigo meu, fã incondicional desse cientista, disse que Carl Sagan, no leito de morte, foi perguntado por alguém: “E agora, que você sabe que vai morrer mesmo, ainda não acredita em Deus”? E ele: “Eu não quero acreditar; quero saber”. Infelizmente não tenho como citar a fonte de onde ele tirou essa afirmação, no momento, mas logo cito por aqui. Muito bom, muito bom.
Thiago,
vou deixar de pensar filosoficamente um pouco para pensar mais sociologicamente.
Muitos juízes brasileiros, desde o movimento direito alternativo, sempre gostaram de ter liberdade decisória. Teoricamente, o direito alternativo não se sustenta. Por isso, a teoria dos princípios foi uma verdadeira válvula de escape que muitos juízes encontraram para decidirem com mais liberdade com apoio teórico. Me incluo nesse rol.
Os resultados desse fenômeno ainda não se pode precisar ao certo. Em alguns pontos, está sendo positivo, em outros negativo.
Seja como for, não deveria ser a regra. O juiz somente deve ser “ativista” (palavra perigosa) em determinados casos e em determinado sentido. Particularmente, penso que o ativismo só se justifica para ajudar grupos em desvantagem.
Infelizmente, o que tem ocorrido é que todos os grupos ideológicos estão utilizando a teoria dos princípios para fazer valer seus interesses. E esse é o grande perigo de qualquer teoria que dá liberdade demais a quem tem poder (no caso, os juízes).
Enfim, depois penso melhor sobre o assunto, até porque está no cerne da minha tese.
Adianto, porém, que sempre fui beeeeeeem favorável à teoria dos princípios, à jurisdição constitucional, à ampla efetivação dos direitos fundamentais pelo Poder Judiciário, mas estou revendo alguns conceitos para defender que somente a jurisdição constitucional que funciona (pró-direitos fundamentais) é que merece ser incentivada.
George
Caro George,
Inaugurei minha participação nesse blog em outro post, mais antigo, e não sei se o comentário será lido.
Por isso, aproveito para repetir aqui o que ficou dito por lá.
Tenho a impressão de que o argumento de autoridade é uma das chaves para se compreender bem o modo “jurídico” de pensar. Seja quando ele é falho ou superficial, seja quando ele é justo e razoável. Do modo que for, o nosso jeito particular de raciocinar deve muito a essa “técnica”, ao apelo à autoridade.
Uma frase histórica de Galileo (que vale mais ainda pelo contexto em que foi pronunciada) é muito instrutiva: a ter de negar o céu de Aristóteles, preferem negar o céu diante de seus olhos.
Pelo que entendi, você articula uma solução intermediária: “in dubio pro auctoritas” (o latim muito provavelmente está errado, mas não resisti a parafrasear o brocardo de processo penal…). Por falta de tempo, por falta de meios, enfim, por falta de forças, o melhor é trilhar o caminho conhecido, ou pelo menos aquele que irá causar menos estranheza.
Entendi corretamente?
Parabéns pelo blog, que é muito bom, tanto na forma como no conteúdo.
Cordialmente,
Cristiano.
George,
Gostaria de saber seu ponto de vista quando afirma que o movimento “Direito alternativo” não se sustenta teoricamente. Acho bastante válido e interessante um debate sobre tal assunto.
Na tese de Doutoramento do novo Reitor da UNB, o prof. José Geraldo Sousa Junior (Direito Como Liberdade: O Direito Achado na Rua. Experiências Populares Emancipatórias de Criação do Direito, Brasília: UnB, 2008), menciona-se:
“Hoje, mais que nos tempos sombrios, começa a se manifestar uma objeção tanto mais impressionante quanto exceda e extrapole o âmbito circunscrito acadêmico.
Aliás, neste espaço, nunca se armou uma crítica muito definida. Ela foi sempre oblíqua, menos epistemológica e mais no plano ideológico, à sorrelfa. (…) São recentes as manifestações expressas em notas críticas, como a de Pedro Scuro Neto, que atribuiu a ‘sociólogos jurídicos’ – nomeadamente José Geraldo de Souza Junior, Roberto Lyra Filho, Bistra Apostolova e Boaventura de Sousa Santos – uma ‘incapacidade de lidar com questões epistemológicas’ pela opção de recorrer a um ‘enfoque interdisciplinar ” (op. cit. p. 12/13)
Nesse sentido, cita-se textualmente as criticas tecidas, a meu ver ideológicas e pejorativas, que foram as seguintes:
“Incapazes de lidar com questões epistemológicas – uma vez que se recusam a considarar a teoria e o método sociológicos – os ‘sociológos jurídicos ‘ recorrem a um enfoque interdisciplinar (ou transdiciplinar) que fosse comum a vários ramos do conhecimento e ultrapassar as fronteiras entre as disciplinas. A partir desse enfoque, o Direito e a Sociologia virariam ‘metamorfoses ambulantes’, dispensariam conhecimento racional em específico e passariam a ser determinados por uma ‘configuração racional de todas as formas de conhecer’ com as quais dialogariam, ‘deixando-se penetrar por elas’. Essa ‘rebeldia metodológica’, que não sobrevive sem uma dose cavalar de sociologismo (‘visão sociológica’), enfatiza a ‘imaginação criadora’ e o ‘contato empático com as experiências dos outros’; não consegue conviver com o ‘conformismo’ (dos operadores do Direito) nem com o ‘jogo contra-revolucionários de dominação e submissão’ (dos sociólogos que ressaltam ordem, integração e equilíbrio social). Daí a recusa de retificar a ideologia jurídica que serve ao uso comum, conservador do direito, e, por outro lado, a decisão de criar condições teóricas e sociais para uma transição paradigmática: O Direito evoluindo da ‘unidade de análise centrada na norma, para uma concepção processual, institucional e organizacional, com unidade de análise centrada no conflito” (Scuro Neto, Pedro. 2007 Sociologia Geral e Jurídica. Manual dos Cursos de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, p. 134/135)
E cita outras críticas feitas ao “Direito achado na Rua” e aos movimentos alternativos do Direito, feitas pela Revista Veja, e por um professor da UnB chamado Ronaldo Poletti (que também se doutorou em 2008 com a tese “importantíssima” sobre ‘Elementos para um conceito jurídico de Império’).
Nesse sentido, corrigindo diatribe conceitual, assevera que o Direito achado na Rua, “o intento é atribuir propriamente Direito ao que emerge de sua fonte material – o povo – e de seu protagonismo a partir da rua – evidente metáfora da esfera pública.”
A tese aboda os impactos de O Direito Achado na Rua na gestação de novas formas de conhecer e ensinar o Direito (I), a configuraçãodo campo da Sociologia Jurídica no Brasil como locus para pensar e realizar os Direitos Humanos (II), a renovação da dogmática jurídica, pelo desenvolvimento da categoria operativa do sujeito coletivo de direito a partir da análise e da convivência solidária com novos movimentos sociais (III). Sendo a introdução (de mais de 100 páginas) dedicado ao uma espécie de memorial, remontando ao nascedouro de uma nova forma de pensar o Direito, com a ajuda de Roberto Lyra Filho à partir de 1978.
Interessante notar que Orlando Gomes já notara e identificara em 1950 (salve engano) que o problema do ensino jurídico no Brasil era que se formavam Juristas navegadores de cabotagem (em alusão a essa peculiar forma de navegação, em que se navega sempre pelos portos de um mesmo país, o navegante não se afasta da costa continental, no sentido da formação calcada na Lei, em que o jurista não se afasta da lei) e não juristas “navegadores de mar adentro” (navegadores que não temem os perigos do mar, e estão dispostos a enfrentar os perigos do inesperado, e para isso são preparados).
Portando George, eu acho que não há objeções de ordem teórica para as premissas de um uso alternativo do Direito, mas estou curioso para saber seu ponto de vista.
Aliás, esta postagem também é uma espécie de pedido, no sentido de que, se você tiver acesso a um artigo, e puder postá-lo aqui, seja em link ou em formato na íntegra, serviria a propósitos acadêmicos para debate sobre “a tensão entre a democracia e a jurisdição Constitucional”.
Refiro-me a:
BREST, Paul. The Fundamental Rights Controversy: The Essential Contradictions of Normative Constitutional Scholarship, publicado na Yale Law Journal no volume 90, ano 1980-1981, p. 1063-1109.
Obs: Muito tenho lido sobre o impacto deste artigo no seio da remodelação democrática Norte-Americana, mas o ideal seria debatê-lo lando-o no original, mas no site do Jornal de Direito de Yale não está disponível para acesso, e nem no site do autor que atualmente é professor da faculdade de Direito de Stanford. Também não tenho acesso ao Heinonline, que possivelmente hospeda uma cópica do periódico.
Agradeço desde já, e parabéns pelo debate.
Thiago,
curiosamente, o Professor José Geraldo esteve aqui na semana passada, junto com o Prof. Boaventura, conversando com os alunos do curso de doutoramento (nós).
Tive oportunidade de lhe parabenizar pelo “direito achado na rua” que tanto influenciou os estudantes da UFC, como eu, nos anos 90. Acho que até hoje tem grande influência junto ao CAJU, que presta assessoria jurídica para comunidades carentes. Aliás, o Boaventura citou o CAJU da UFC em um de seus artigos.
Fui muito influenciado, em minha formação acadêmica, pelo direito alternativo. Li muita coisa de Rui Portanova, Amilton Bueno de Carvalho etc. Concordo com a idéia básica que eles pregam: o direito e a lei em particular podem ser instrumentos de opressão da classe dominante. Por isso, o juiz deve exercer um papel crítico em relação ao direito legislado, devendo seguir seu instinto de justiça quando achar que a lei é injusta.
Durante muito tempo, segui esse entendimento. Aliás, até hoje, é possível perceber em minhas sentenças e em meus textos doutrinários um pouco do “uso alternativo do direito”.
Apesar disso, acho que o direito alternativo foi superado, no plano teórico, pela teoria dos direitos fundamentais. A teoria dos direitos fundamentais permite os mesmos resultados pretendidos pelo movimento direito alternativo com muito mais legitimidade (leia-se: com um discurso menos “revolucionário”).
Foi nesse sentido que disse que o direito alternativo – o dos juízes gaúchos – não tem base teórica. Ele tinha algum sentido antes de 88, quando o regime constitucional era formalmente autoritário. Agora, não é mais preciso ser alternativo. Ser positivista (ou pós-positivista) é ser libertário e promover a igualização.
Quanto ao direito achado na rua (José Geraldo) ou o direito do cotidiano (Boaventura), eles, por definição, são pretendem ocupar o espaço do direito positivo. Eles pregam, com toda razão, que o direito não se esgota nos tribunais. Que há “direitos alternativos” funcionando à margem do direito oficial. Não há como negar isso. O direito judicial não chega a ser nem a ponta do iceberg.
George Marmelstein
Cristiano,
o argumento de autoridade – ou seja, aquele que se sustenta tão só pelo nome da pessoa que o defende – não serve de nada. É diferente do argumento com base na lei e do argumento com base no precedente.
Como afirmei, a lei e o precedente não existem por acaso. Eles um dia foram meras hipóteses que se submeteram a algum tipo de teste de falseabilidade e passaram no teste – pelo menos naquele momento. Por isso, eles possuem uma presunção de “correção”.
Para deixar de observá-los, é preciso reunir argumentos fortes contra eles. Mas repito: na minha ótica, seguir a lei ou os precedentes não é a mesma coisa que seguir os argumento de autoridade.
Acho que as leis e os precedentes devem ser analisados pelo juiz de forma crítica, desconfiada. Se o juiz conseguir demonstrar que existem razões para eles não serem observados, que assuma o ônus argumentativo. É assim que o direito evolui.
O que não pode é deixar de aplicar a lei e o precedente porque amanheceu com dor de dente ou porque o seu horóscopo recomendou que ele deveria fugir da rotina. Ele tem apresentar argumentos razoáveis e racionais, que tenham, objetivamente, suporte constitucional.
George
George,
relembremos Ortega y Gasset:
“Eu sou EU e minha circunstância…”
“Mas, o que é a circunstância?”
“A circunstância é tudo o que está em volta do homem…”
“Tudo que o rodeia…”
“…o imediato
…o remoto
…o físico
…o histórico
…o espiritual”
“A vida é o caminho do EU por meio do mundo…”
“…E o mundo é o cenário no qual o homem atua”
“Viver é tratar com o mundo…dirigir-se a ele …nele atuar…dele ocupar-se…”
“A realidade circundante forma a outra metade de minha pessoa”
“portanto…”
“Eu sou eu e minha circunstância,
e se não a salvo,
não me salvo eu.”
Sua formação permeada por um uso alternativo do Direito é salutar para o jurisdicionado carente. Mas não vejo a transposição do revolucionário DANR por meio dos DF. A aplicação de princípios, com o elastério interpretativo/aplicativo, retoma a discussão anterior, a necessitar de maior justificação, maior ainda do que na aplicação das regras.
Se por um lado, conforme assentado, a refutação de um precedente é mais difícil, porque exige esforço dobrado, um para dizer porque o precedente não serve, e segundo para dizer por que a outra solução alcançada é a melhor, por outro lado, a aplicação do Direito mais voltada para o social esbarra em tais e quais graus de Jurisdição reformadores.
Infelizmente essa é uma constatação que se verifica tanto no âmbito dos DF quanto do DA.
Não se pode esquecer, é verdade, o grande papel desempenhado pelos núcleos de assistência Jurídica, verdadeira assessoria social, psicológica, e, em alguns casos, também jurídica.
Ps. Se conseguir postar aqui o artigo mencionado na mensagem anterior agradeço muito.
George,
Acho que você se equivocou duas vezes. A primeira, quando disse que o argumento de autoridade não serve para nada. A segunda, quando afirmou que ele é diferente do argumento com base no precedente.
Me permita lançar mão de um argumento de autoridade…rs. Chaïm Perelman refere-se EXPRESSAMENTE, no Tratado da Argumentação, ao precedente judiciário! Cita Perelman a opinião de outro autor sobre o precedente:
“um precedente judiciário exerce uma influência inevitável, conquanto deplorável, sobre o juiz de uma causa…os autores devem manter sua independência e buscar a verdade através da lógica”.
Não me comprometo com a idéia defendida, e se a transcrevo é apenas para demonstrar o que digo, ou seja, que o precedente é, sim, um argumento de autoridade.
A citação está na página 349 na obra Tratado da argumentação – a nova retórica, São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Perelman explica que as autoridades invocadas são muito variáveis: ora será o “parecer unânime” ou a “opinião comum”, ora certas categorias de homens, “os cientistas”, os “filósofos”, os “Padres da Igreja”, os “profetas”; por vezes a autoridade será impessoal: “a física”, “A DOUTRINA”, a “religião”, “a Bíblia”; por vezes se tratará de autoridades designadas pelo nome.
O trecho pode ser consultado à página 350 da mesma obra.
“Demonstrado” o equívoco de não enxergar no precedente um argumento de autoridade, fica fácil compreender o outro equívoco, qual seja, o de negar importância ao argumento de autoridade. E isso, segundo suas próprias palavras, que enaltecem o precedente. Note que também a doutrina (enquanto doutrina, e não o conteúdo, o arrazoado em si do livro) também é um argumento de autoridade. Não acha que a sua atividade judicante ficaria bastante limitada se não lhe fosse permitido usar a jurisprudência e/ou a doutrina?
Mas me socorro novamente de Perelman, que defende a aplicação do precedente judiciário:
“Mas não é uma ilusão deplorável crer que os juristas se ocupam unicamente com a verdade, e não com a justiça nem com a paz social? Ora, a busca da justiça, a manutenção de uma ordem eqüitativa, da confiança social, não podem deixar de lado as considerações fundamentadas na existência de uma tradição jurídica, a qual se manifesta tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Para atestar a existência de semelhante tradição, o recurso ao argumento de autoridade é inevitável”. Página 349 da obra citada.
Quando você diz que a formação dos precedentes atestam reflexões anteriores, isso não modifica o fato de que se trata de um argumento de autoridade, mas apenas justifica, legitima essa autoridade. Nada mais.
Afinal, o argumento de autoridade serve, sim, para “alguma coisa”…
Volto à minha tese. O argumento de autoridade é uma técnica crucial para entender o nosso modo “jurídico” de raciocinar. Para o bem ou para o mal. Certamente será mais para o bem, se tivermos a consciência de que a todo momento estamos utilizando essa técnica.
Seja como for, afora nossas discordâncias terminológicas, em essência estamos dizendo a mesma coisa. Sobretudo concordo com você, quando alerta que o juiz deve ter um olhar crítico e desconfiado sobre os precedentes. Como já trabalhei no STJ, posso assegurar que essa desconfiança é absolutamente necessária.
Cristiano
Cristiano,
Bom argumento, sobre o argumento de autoridade. Contudo, deve-se levar em consideração que, pelo menos no Brasil, estes são (Doutrina e Jurisprudência) fontes do Direito, e é essa a grande importância que lhes atribuo, independentemente de quem seja o “autor”/”produtor” da fonte. E isto, desde que tenha um conteúdo mínimo a ser aproveitado.
É verdade, porém, que no mundo acadêmico e jurídico, leva-se bastante em conta se o autor/produtor for alguém que tem um Min. ou um Phd (Dr) antes do nome, como se isso legitimasse, ainda mais, o argumento.
Você citou o “Tribunal da Cidadania”, com propriedade, mas acho que deve ser levado em conta, além disso, que os Ministros, na maioria das vezes, votam no sentido que o membro do Parquet apontou, como fiscal da lei. Neste sentido, os membros do MP (MPF) que atuam na Corte (Subprocuradores Gerais da República e excepcionalmente o próprio PGR) tem certa influência nos precedentes de autoridade.
Assim sendo, o argumento fica acompanhado de mais um elo na corrente.
Cristiano,
para a ciência, argumento de autoridade é aquele cuja única força é a autoridade de quem o defende. É assim porque fulano falou. É assim porque o legislador disse que é. É assim porque o STF decidiu. Isso, sem dúvida, é argumento de autoridade. Isso está lá no meu post sobre argumentos de autoridade. Para mim, a importância desse tipo de argumento é mínima, quase zero.
Quando digo que a lei e os precedentes não são meros argumentos de autoridade é porque se presume que eles passaram por um teste de justificação de sucesso. Por isso, eles possuem uma presunção de correção. A solução prevista na lei presume-se correta porque ela passou por um demorado processo legislativo, onde foram debatidas as suas vantagens, e foi aprovada. Se não houver argumentos fortes para tirar essa presunção, só resta ao juiz aplicar a lei. O mesmo com os precedentes.
Agora, o argumento de autoridade tem alguma valia? Por si só, não. Mas se tiver algum conteúdo, ele terá importância não porque uma determinada “autoridade” o defende, mas pelo seu valor intrínseco.
Uma coisa é você dizer: as uniões estáveis podem ser reconhecidas no Brasil porque o Luís Roberto Barroso disse que podem. (argumento de autoridade puro)
Outra coisa bem diferente é dizer: as uniões estáveis podem ser reconhecidas no Brasil porque existem os argumentos X, Y e Z que podem ser citados em favor dessa tese, como fez, inclusive, o professor Luís Roberto Barroso, que é um grande conhecedor do direito constitucional brasileiro.
No primeiro caso, é o argumento de autoridade puro, que não vale de nada. No segundo, a citação da autoridade está sendo utilizada como mero reforço retórico, que, nesse aspecto, tem inegável valia. É uma técnica argumentativa válida, do ponto de vista retórico.
Quanto ao Perelman, já li os três livros dele publicados no Brasil (já faz algum tempo) e concordo com boa parte do que ele defende. Tenho certeza de que, no fundo, tirando alguns ruídos de linguagem, nossas conclusões são semelhantes.
George
Thiago,
quanto ao artigo, vou tentar pedir junto ao Centro de Atendimento ao Juiz Federal. Parece ser mesmo interessante.
Enquanto isso, recomendo a leitura de outro texto bem interessante sobre o assunto e igualmente influente:
Clique para acessar o Waldroncore.pdf
Eu próprio ainda não tive tempo de ler, mas ele já está na fila de prioridades.
George
Ah, só um detalhe: é um artigo totalmente contrário à jurisdição constitucional (judicial review). Por isso é bom: ou seja, um bom material para ser refutado (se for possível).
George
Caros George e Tiago,
De JEREMY WALDRON, temos, ainda, a obra intitulada “A Dignidade da Legislação” [WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003].
No livro, o autor defende, em síntese, a necessidade de se privilegiar as decisões do legislador como forma de respeitar a autonomia moral dos indivíduos. Tal argumento é utilizado para criticar o que seria, no seu entendimento, uma excessiva transferência de poderes para as instâncias judiciais, em desprestígio aos fóruns majoritários.
Abs.
Jânio.
Prezado Thiago,
Realmente, muitos votos condutores no STJ são a transcrição quase integral do parecer do Ministério Público.
Os elos nessa corrente são muitos. Diria até que se alimentam reciprocamente.
Ah, e o artigo que você transcreveu do José Reinaldo de Lima Lopes é muito bom, já tinha lido na página eletrônica da Revista de Informação Legislativa há algum tempo atrás.
Cristiano
George,
Tenho a impressão (não mais a certeza) de que realmente estamos pensando a mesma coisa, mas, ao mesmo tempo, verbalizando coisas muito diferentes.
Apenas quanto ao exemplo do Barroso, observo que o argumento de autoridade pode ser o único ou o decisivo (inclusive psicologicamente), ou apenas um reforço, como bem notado por você. Do mesmo modo, entendo que há muitas outras formas mais sutis de argumentar com apelo à autoridade.
Na menção a Galileo, por exemplo, lanço mão de duas autoridades: o próprio Galileo, e, mais remotamente, a Ciência.
Aliás, a ciência é, nos dias que correm, o argumento de maior autoridade. Vivemos tempos em que qualquer menção a “ciência” e “científico” já valem quase pelo discurso inteiro.
E aqui, fugindo um pouco da minha obsessão pelo “argumento de autoridade” para abordar outro tema do post, gostaria de lançar uma provocação. Não acho que o juiz deva ser mais cientista. Acredito, isso sim, que ele deve ser mais político. Ele exerce poder, e poder tem mais de política do que de ciência. Falta ao juiz brasileiro, a meu sentir, a perspectiva política, a dimensão do seu papel político, enfim, do seu poder.
Evidentemente que não falo de política partidária. A política não se restringe a partidos.
Acho que, em parte, o tecnicismo dos nossos juízes se deve ao recrutamento deles. É pela ciência que são recrutados. Quando você diz (acho que em outro post) que o juiz será um eterno angustiado, preso à necessidade de fundamentar suas decisões, muito se deve, penso, à pouca legitimidade em fatores reais de poder. O juiz brasileiro alcança a legitimidade e admiração de seus pares, de um modo geral, pela robustez da doutrina que tem ou professa.
Mas é só uma provocação, que tampouco é inédita. Já Montaigne, no ensaio “Do pedantismo”, pugnava por menos ciência nos Tribunais da França quinhentista.
Por fim, será que o método que você propõe não teria alguma afinidade com o Brandeis brief, no caso Muller v. Oregon: mais de 100 páginas de dados técnicos, e pouco mais de duas de questão legal (se não na mesma proporção, pelo menos no mesmo sentido)?
Cristiano
Cristiano,
de fato, acho que o problema se restringe a “hipostasiações lingüísticas explicadas pela índole apofântica da proposição” (hahahahaha).
Não apenas o juiz Brandeis, mas também o juiz Holmes, me espelham nessa visão pragmática do direito. Acho que é por aí mesmo, ou seja, vamos citar mais dados empíricos, argumentos concretos, aceitos pela comunidade científica, e menos blá blá blá jurídico. Meu pensamento tem um pouco de realismo norte-americano e também da teoria jurídica de alguns alemães, como Esser, por exemplo.
Quanto ao papel político do juiz, também acho que ele deve ter e acho que, de um modo geral, os juízes brasileiros – pelo menos os federais – têm consciência de que possuem. Não posso falar pelos juízes estaduais.
Só que ninguém se legitima argumentativamente pela ideologia que professa, mas pelos argumentos por detrás da própria ideologia. E mais: é preciso que a ideologia tenha base constitucional.
George
Valem as palavras do grande Nelson Hungria: “nunca é demais repetir-se que o usus fori e a opinio doctorum, por mais respeito que mereçam, não devem ser tratados como tabus ou exibidos como roupas francesas”.
Oportunas as palavras do grande Nelson Hungria:
“Nunca é demais repetir-se que o usus fori e a opinio doctorum, por mais respeito que mereçam, não devem ser tratados como tabus ou exibidos como roupas francesas”.
Yo no veo irf3nico lo que dices. a1Me parece tan natarul! Yo soy cantante. Y lo admito abiertamente: el ser humano me aterra, y me cansa a la vez. El fanico momento en el que me siento en perfecta comunif3n con e9l es cuando estoy encima de un escenario, cuando contesto preguntas sobre mi trabajo o cuando asisto a algfan evento en calidad de Artista. El resto del tiempo evito los grupos de gente. Pero en cambio adoro pasear por el centro de Barcelona, donde entre tantedsima gente, nadie se fija en med. Es como estar solo, aun rodeado de multitud de caras.Si nosotros no fue9ramos ased No haredamos lo que hacemos.
Cesar Novais e Promotor,
Nelson Hungria deve ser mais lembrado por todos, não simplesmente por suas obras doutrinárias, mas principalmente no que tange a sua passagem pelo STF como um seu Ministro, e também quando de lá se aposentou e foi atuar como Advogado.
Neste último caso, especial destaque para sua atuação em defesa de Carlos Heitor Cony, quando este enfrentou jornalisticamente o Marechal Costa e Silva, e escreveu inúmeros artigos, contra o que chamou de “quartelada de 1º de Abril”, em alusão sarcástica ao Golpe Militar de 31 março de 1964. Artigos como “O Ato e o Fato” e “A revolução dos carangueijos” são simplesmente fabulosos.
Sinal de bravura do jornalista e acadêmico imortal, e ainda mais do então ex-Ministro so STF, que defendia um inimigo do regime.
Em suma, destaque também para suas últimas palavras no leito de morte, segundo René Ariel Dotti:
“Narra a crônica familiar que, momentos antes de falecer, ele reclamou a presença dos quatro filhos e, ainda com a voz firme, pediu-lhes que o perdoassem por não ter deixado riqueza material, ouvindo a resposta afetuosa de que não poderia ser maior a fortuna que o seu exemplo de vida. Mas ele insistiu na sua derradeira preocupação, declamando longa passagem, no mesmo sentido, de Carlyle sobre um pais e seus filhos(…) Nelson Hungria teria dito aos filhos mais ou menos assim: ‘Logo mais, quando estiverem me levando e eu não puder falar, saibam que estarei dizendo em silêncio: Aqui vai o Nelson, muito a contragosto’ Aquele foi o dia 26 de março de 1969′”
Em suma, poderia Nelson Hungria, no dia da sustentação Oral perante o STF, ou da autiência perante o ministério do exército, quanda da defesa de Heitor Cony, ter se valido, e não duvido que o tenha feito, da magistral citação de do Advogado e Político Francês Jean Didier
“Trago aqui a minha cabeça e a minha palavra. Vocês poderão ficar com a primeira, após ouvir a segunda”.
Em épocas em que se perseguem idéias, é porque as idéias valem muito, e a defesa dos idealistas vale muito mais.
George,
estou lendo o artigo que você postou, e parece ser realmente interessante, por enquanto, as idéias contra a Jurisdição Constitucional são bem conhecidas, no sentido de que a legislação deve ser prestigiada, supondo-se que as leis sejam feitas dentro de um sentido realmente democrático.
O artigo começa fazendo uma provocação (ao menos assim entendi a pergunta feita), indagando se seria possível um juiz derrubar uma lei que considera ferir direitos individuais? E cita um julgado de 2003 da Suprema Corte de Massachusetts, envolvendo a limitação judicial do casamento Gay, quando menciona que estes últimos se sentiram como cidadãos de segunda classe sob o pálio da então existente legislação acerca de casamentos.
E por enquanto, (estou na metade do artigo), restringe-se ao debate sobre o bem que pode advir da Judicial Review, citando alguns julgados, e o mal que também pode vir a lume, citando outra gama de julgados.
Cristiano e George,
George, quanto ao final de sua mais recente mensagem, reconheço que os Juízes, ao menos os Federais, em sua grande maioria, estão cônscios de sua função política, mas indago, acerca de sua última frase: e se a Constituição (no ponto em que menciona Ideologia de Base Constitucional) também é fruto de pressões ideológicas, ou mesmo viola os Direitos Fundamentais do cidadão?
Penso que o Jurídico é apenas um braço do político, calcando em leituras recentes de julgados antigos, e sobretudo, do CLS (Critical legal studies) e de suas raízes na escola de Frankfurt.
Esse é o motivo pelo qual se aponta a Jurisdição como exercício de atividade eminentemente política. O Julgador deve ser imparcial, é o que se diz, mas isso não é possível. Nem imparcial e nem neutro.
Se a paixão, inerente ao exercício sadio da função Política tomar conta do julgador, há como repreendê-lo legitimamente?
Lembro aqui de uma anedota que menciona que, a paixão (travestido de amor), quando era criança, brincava com sua amiga, a loucura. Em uma fatídica brincadeira, que acaba num desentendimento, a loucura deixa a paixão cega. Chama-se então o todo poderoso Zeus, para resolver a situação, quando fica decidido que como punição, a loucura fica condenada a conduzir a paixão, por onde quer que ela vá.
George,
Concordo quando você diz que “ninguém se legitima argumentativamente pela ideologia que professa, mas pelos argumentos por detrás da própria ideologia”.
Me permita observar, no entanto, que isso é diferente de dizer: ninguém se legitima pela ideologia que professa.
Sem o advérbio (“argumentativamente”) a frase não é exata. As pessoas se legitimam, sim, em determinados contextos, pela ideologia que professam.
Os juízes, por exemplo, não se legitimam (no que se refere à sua atuação perante a sociedade) apenas pela qualidade dos argumentos. Ou, dito de outro modo: não é a teoria, enquanto ciência, a que estão vinculados que lhes dá a legitimidade social e política.
A meu sentir, o juízes encontram respaldo político e social, na sua atuação, quando essa atuação coincide ou se aproxima do conjunto de crenças e valores que prevalece em determinado tempo histórico.
Ainda me atrevo a ir além: mesmo argumentativamente, os juízes se legitimam na medida em que seus argumentos são topoi aceitos razoavelmente pela comunidade jurídica. E topoi razoavelmente aceitos só o são se estiverem de acordo (ao menos em parte) com o conjunto de crenças e valores dominantes.
Ocorre que o outro nome desse conjunto de crenças e valores é ideologia. No caso, a ideologia social dominante.
Já adianto que não quero dizer que alguém se legitima num debate simplesmente com dizer “sou de esquerda”, ou “sou democrata”.
Não. Mas o argumento será capaz de convencer se estiver conforme um conjunto de crenças aceitas.
Agora, relacionando ideologia e Constituição, como vc fez na parte final da mensagem, tenho a impressão de que não é a ideologia da Constituição que legitima política e socialmente a atuação do juiz, simplesmente.
A ideologia dominante, em primeiro lugar, condiciona a interpretação da Constituição. Melhor: a ideologia dominante numa determinada sociedade condiciona o significado, ou os significados aceitáveis da Constituição.
Juridicamente, a Constituição é o marco zero. Politica e socialmente é apenas um episódio.
Aliás, diria até que nem mesmo a prática jurídica, o campo jurídico, consegue realmente fazer da Constituição o marco zero. Mesmo o campo jurídico é incapaz de sentir o efeito inaugural da Constituição. Nos primeiros anos de uma nova Carta, ainda que esse novo documento represente uma virada completa de paradigma, o paradigma antigo ainda sobrevive.
À parte essa impossibilidade de simplesmente aderir à ideologia da Consituição (os juízes, não preciso dizer, têm a sua própria ideologia, que coincide, em geral com a ideologia dominante numa dada sociedade), me questiono qual seria a ideologia da Constituição.
O que você acha? Nossa Constituição tem uma ideologia de esquerda ou de direita? E a nossa magistratuta, prevalentemente, é de esquerda ou de direita?
Deixo aqui minha opinião. Acho que a ideologia da Constituição é de esquerda (ainda que bem moderada), e a nossa magistratura é predominantemente de direita (essa, esclareço logo, é uma impressão nada objetiva, muito pelo contrário, muitíssimo subjetiva).
Cristiano
George e Thiago,
Sou mais cético do que vocês acerca da consciência política dos juízes, sejam federais, sejam estaduais.
O juiz lúcido do seu papel político é alguma coisa de acidental e improvisado, porque o recrutamento da nossa magistratura profissional, ja defendi, quase que só se restringe a aferir a ciência do bacharel.
Ora, ciência e saber político são duas coisas independentes.
É a mesma coisa no que se refere à honestidade. O grande intelectual, o homem inteligente e preparado, não necessariamente será um homem justo ou honesto. Pode muito bem ser um canalha, ou um venal.
Voltando ao tema. Nada ou muito pouco, na forma de seleção do nossos magistrados, exige a sensibilidade política necessária ao exercício do poder. Estamos limitados a aferir o grau de ciência.
Para que não me entendam mal, desde logo esclareço que não faço a menor idéia de como melhorar essa forma de recrutamento.
Já refleti muito sobre isso, e cheguei à conclusão (à semelhança de Churchill) de que o concurso, nos moldes atuais, ainda é o pior método, com exceção de todos os restantes…
Se me entrego a essas considerações, não é porque tenha algo novo a propor, mas apenas porque acho útil termos em conta os limites do nosso desenho institucional.
Cristiano
Cristiano,
De fato, e nesse ponto concordo inteiramente com você, o recrutamento de Magistrados no Brasil não exige conhecimentos Políticos, ou Mesmo Sociológicos por assim dizer. Porém, e é ai que venho discordar, isso não quer dizer que eles não tenha conhecimento político.
Concordo com o que você mencionou, acerca de conhecimento intelectual e que isso não torna ningué, necessariamente justo ou honesto.
Contudo, o conhecimento político está no dia a dia dos cidadãos. E nesse ponto pego carona no pensamento de Bertolt Brecht, com alterações propositais:
“Ele ouve, fala, e participa dos acontecimentos políticos. Ele sabe [que] o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.
Eles [alguns Magistrados, é verdade, nem todos] NÃO se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Sabe que, da sua ignorância [acaso a exercite] política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais. ” (O Analfabeto Político – com alterações proposições positivas)
É bem verdade que nem todos os Magistrados vão pessoalmente a feira, ao mercado, notadamente os que estão nos Tribunais. Mas eles sabem que suas decisões afetam, e muito, a esfera do Político, algumas vezes de maneira faceira, como no caso do STF e a contribuição dos inativos [nome inapropriado para se referir aos aposentados, que são mais ativos que muitas pessoas jovens].
É interessante este debate dialético, e ambos concordamos, ao que vejo, com relação a não se existir ainda melhor forma de recrutamento de Julgadores. Que diga-se de passagem é desigual, ao tempo em que a sociedade brasileira não compete em termos igualitários, sem acesso a formação, e sem possuir acesso a meios e materiais que lhe possibilitem exercer uma visão crítica da própria sociedade.
Quanto a mensagem acerca de Constituição e Ideologia, acredito que mesmo a discussão sendo com George, eu possa opinar. E opino no sentido de que a Constituição está longe de ser de esquerda. Nossa Carta, em seu corpo introdutório, permanente e transitório, á bastante prolixa, mas acaba sendo igual a um bêbado de Botequim, que fala, fala e acaba não dizendo nada (para os que dela precisam).
A propriedade ainda é o cerne central da Carta, em que pese a louvável representação dos Direitos e Garantias Fundamentais. A Prisão do depositário infiel, ainda é discutida freneticamente, sendo que dentro do STF ainda existem ministros que concordam com ela. O bem de família ainda pode ser penhorado. Efetivaram, dentro da própria carta do Trem da Alegria dos servidores públicos. A carta fala de dignidade da pessoa humana, mas deixa seus filhos, na vontade de comer, vender o almoço para comprar a janta, quando muito. Fala de salário mínimo nacionalmente unificado, que atenda as condições mínimas de existência, mas se nega a atrelar o índice de correção do mínimo ao Máximo (Ministro do STF). Fala de Federalimso, mas permite que a União seja a dona da Festa e por conseguinte do Bolo e dos Brinquedos. Fala em democracia, sem se preocupar mais detidamente com os mescanismos de participação direta.
Ora, se era para gastar mais de duzentos artigos, não existe matéria mais importante a ser tratada. Enfim, a ideologia que predominou na ANC de 1986, após a convocação por meio da EC 26 é essencialmente Neoliberal. Basta ver quantos políticos de Esquerda lograram êxito nas eleições Estaduais e Municipais. e os senadores Biônicos da famigerada Arena?
Com relação aos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, tem legislador e juiz que adora quando se fala em normas programáticas. Contudo, o intérprete da Carta pode fazer do Azul…. Vermelho. Afinal de contas, não se propaga tanto por ai, que a Constituição é aquilo que a Suprema Corte diz que ela é. Esse ponto é anida mais complexo. Quando foi promulgada a Carta de 1988, quantos Ministros sairam, para que uma nova gama de magistrados interpretassem a nova carta que surgia? Ora, os Ministros eram os mesmos da Gestão anterior, dos cassetetes, dos beleguins, dos porões. A interpretação da Carta, salve nas inovações trazidas, por motivos óbvios, ficou essencialmente a mesma da Carta da 1969 (Emenda à CF/67).
A esquerda nunca se manifestou, na prática, da maneira como se lia na teoria. E isso no âmbito das três funções Estatais, exceto, é claro, dos Ministros do STF Evandro Lis e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, e quando fizeram, foram cassados. Hoje em dia, o STF, por maioria, é verdade, aceita as manobras fraudantes da Carta, e aceita ser desmandado, como nos exemplos recentes e eminentes, da verticalização, e da quantidade de vereadores que chegará mais uma vez ao STF. E a história se repetirá. É o que penso, de maneira cética.
Thiago,
Quando falo em política, não é no sentido de ciência, mas de vivência e participação. De comprometimento com as decisões fundamentais da sociedade, de responsabilização diante dessas decisões. Nessa linha, a meu juízo, não alteraria muito o quadro exigir dos candidatos à magistratura conhecimentos políticos ou sociológicos. Não falo em exigir conhecimentos formais, mas de garantir (a sociedade) que os homens e mulheres responsáveis pela jurisdição estejam comprometidos com os valores fundamentais da nossa sociedade.
O que quero dizer com relação à dimensão política da jurisdição é que, independentemente da consciência política de um magistrado em particular, a nossa institucionalidade (ou a nossa cultura política) não permite o controle político das decisões judiciais. O compromisso do juiz com as decisões políticas fundamentais (para utilizar a fórmula de um alemão, nos últimos tempos maldito) não tem como ser aferido.
Ouvi algo muito parecido numa palestra do saudoso Calmon de Passos. O juiz dos juízes é o povo, mas o nosso não está aparelhado nem habituado a julgar.
Agora veja. Num contexto em que a jurisdição não se limita a resolver litígios particulares, mas vai além, porque tem o poder de interferir em decisões administrativas, em implementação de políticas públicas, etc., é fundamental que a magistratura esteja afinada com a ideologia da Constituição, para usar a expressão do George, enfim, com as decisões políticas fundamentais.
Como compreender que os juízes possam interferir em decisões políticas (quando por exemplo invalidam uma lei, tornando sem efeito suas prescrições) sendo apenas técnicos?
Quanto à ideologia da Constituição, continuo defendendo que ela é, ou pelo menos pretende ser, de esquerda. A Constituição tem um viés de igualdade material muito forte. Por mais que seja capitalista (e isso não há como negar), o seu programa político é muito influenciado por idéias de esquerda. Ainda que, como diz o Marcelo Neves, esse programa seja apenas um álibi.
No mais, concordo com você quanto à composição da Assembléia Costituinte e à composição do Supremo pós-88 (salvo algumas exceções: Sepúlveda, por exemplo).
Cristiano
Cristiano,
concordo com tudo o que você falou.
Acho que os juízes possuem um papel político muito importante na concretização da constituição (aqui incluído o artigo terceiro). E também concordo que o concurso público para o ingresso no cargo privilegia um conhecimento meramente técnico.
Também acho que a nossa Constituição é de “esquerda” – palavra aqui utilizada no sentido sugerido por Bobbio, ou seja, como ideologia que combate as desigualdades.
Estou escrenvendo um paper sobre as “objeções e contra-objeções à jurisdição constitucional”. Tentarei apresentar as principais objeções que são feitas à jurisdição constitucional e, ao mesmo tempo, tentarei refutá-las.
Aqui alguns tópicos:
Primeira Objeção: a jurisdição constitucional é anti-democrática
Segunda Objeção: os juízes não são eleitos pelo povo
Terceira Objeção: as partes não escolhem os seus juízes
Quarta Objeção: os juízes não possuem responsabilidade político-eleitoral
Quinta Objeção: a jurisdição constitucional tira do povo a capacidade de luta democrática, criando uma “democracia sem povo”
Sexta Objeção: A jurisdição constitucional é uma manifestação do paternalismo estatal que é incompatível com a idéia de auto-determinação do indivíduo
Sétima Objeção: Os juízes são membros da elite e, portanto, não têm real percepção dos problemas da sociedade
Oitava Objeção: Os juízes possuem um conhecimento limitado sobre as matérias que apreciam
Nona Objeção: Os juízes não são mais sábios do que os demais cidadãos
Décima Objeção: Os juízes, assim como os políticos, também possuem defeitos éticos
Décima Primeira Objeção: O Poder Judiciário, assim como o Poder Legislativo, também não responde às demandas com a celeridade desejada
Décima Segunda Objeção: Os juízes não têm autoridade moral para pretenderem ser uma espécie de “super-ego” da sociedade
Décima terceira objeção: Os juízes devem respeitar o princípio da separação e independência entre os poderes
Décima Quarta Objeção: Os juízes não possuem mecanismos processuais eficientes para fazer valer suas decisões
Décima Quinta Objeção: A jurisdição constitucional gera decisões irracionais, imprevisíveis, arbitrárias
Décima Sexta Objeção: A efetivação judicial dos direitos fundamentais é ilusória, já que o Poder Judiciário não tem meios materiais para fazer valer a sua ordem
Décima Sétima Objeção: Ninguém controla os juízes
Décima Oitava Objeção: As decisões judiciais concretizadoras de direitos geram impactos econômicos e administrativos que não são levados em conta pelos juízes
Décima Nona Objeção: A Jurisdição Constitucional pode ser tão perversa quanto a pior das ditaduras
Vigésima Objeção:
Como se vê, há vários pontos envolvendo a figura do juiz. Compreender o juiz é essencial para compreender os problemas e as virtudes da jurisdição constitucional. E de nada adianta um ordenamento jurídico tão bom se os juízes não sabem tirar proveito dele.
George Marmelstein
George,
Essa questão (“compromisso político-ideológico dos juízes”), não obstante possa tornar o seu “desafio” ainda maior, agregaria, com certeza, importantes elementos às suas “aproximações”.
Se é possível afirmar que a Constituição Federal de 1998 teria um “viés de esquerda”, parece-me que não poderíamos dizer o mesmo em relação à grande maioria dos juízes brasileiros.
Aliás, essa questão é destacada por Luzia Marques da Silva Cabral Pinto [CABRAL PINTO, Luzia Marques da Silva. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da constituição. Coimbra: Coimbra, 1994, p. 76-77]:
“A neutralidade ideológica dos juízes, presumida por estas posições jusnaturalistas – como se a magistratura judicial ‘navegasse num espaço etéreo e não estivesse inserida numa sociedade de classe – é uma ilusão que a sociologia judicial desmente. Na verdade, as investigações empíricas efectuadas na Itália sob a direcção de R. Treves demonstram que ‘a magistratura italiana, nas suas actuações e decisões (em relação sobretudo com o problema da greve, atitudes face à classe operária, ao fascismo de Mussolini, etc), revela ter estado orientada, talvez sem clara consciência disso, por uma ideologia de caráter prevalecentemente liberal-conservador: resistência moderada perante o totalitarismo político, no problema da liberdade, e defesa classista da propriedade privada e das suas conseqüências sociais e econômicas, no problema da igualdade; estas teriam sido as suas atitudes fundamentais.”
Entre nós, segundo “pesquisa” realizada pela Universidade de São Paulo e divulgada pelo jornal Folha de São Paulo, “num litígio judicial com o andar de baixo, o de cima tem até 45% mais chances de prevalecer”.
O trabalho referido é “ROBIN HOOD versus KING JOHN: COMO OS JUÍZES LOCAIS DECIDEM CASOS NO BRASIL?”.
Jânio.
Jânio,
o estudo que conheço sobre o assunto, além do “Corpo e Alma da Magistratura Brasileira”, é um estudo do pessoal da Análise Econômica do Direito:
Clique para acessar o Armando_Castelar_Pinheiro2.pdf
Eis um trecho:
“a maioria dos magistrados acredita que os juízes têm um papel social (redistributivista) a desempenhar, e que o objetivo de proteger a parte mais fraca na disputa justifica a violação de contratos. Este posicionamento reduz a segurança jurídica com que se desenrola a atividade econômica, e pode fazer com que determinados mercados não se desenvolvam, possivelmente prejudicando exatamente os grupos sociais que os juízes buscam beneficiar. A quase inexistência de um mercado de crédito imobiliário, notadamente para as famílias de mais baixa renda, é um exemplo ilustrativo de como uma boa intenção pode terminar tendo o efeito oposto ao originalmente buscado”.
George Marmelstein
Como se vê, ele reconhece que os juízes têm uma visão “de esquerda” e critica essa ideologia judicial. Não é à toa que o texto está no site da Febraban.
Não sei se os juízes, em sua maioria, de direita ou de esquerda. Mas, pelo menos o discurso, costuma ser de esquerda. Não conheço nenhum juiz no Brasil que defenda que o papel do direito é defender o status quo. Talvez até tenha quem pense assim. Mas ninguém assume.
george
Enfim: penso que os juízes se dizem de esquerda, mas julgam de forma um pouco mais conservadora, mas ainda assim de esquerda.
George
Cristiano,
Creio que a Constituição tem um viés de igualdade formal muito forte, igualdade perante a Lei, que não quer dizer muita coisa. A igualdade pra valer mesmo, a material, sinceramente eu não vejo inserida no corpo do texto. E ai eu me refiro a Constituição escrita e interpretada por quem o faz de Fato, e não de Direito (pressuposto por mim) o STF.
O Marcelo Neves fala em legislação alibi, muito bem lembrado por você, no rol da Constitucionalização Simbólica, e isso ainda vai ser provado quando se analizar uma série de normas concretas inseridas em nossa Constituição. E não só a legislação alibi, forte signo de simbologia Constitucional, mas também como Constitucionalização simbólica de valores sociais e Constitucionalização simbólica como fórmula de compromisso dilatório (normas programáticas).
Nesse sentido, quando o Juiz dá efetividade à norma Constitucional, possibilita-se a aferição de seu comprometimento político.
Quanto ao Ministro Sepúlveda Pertence, que particularmente gosto, em termos de decisões, mormente acerca de Garantias Constitucionais Penais, e sobre seu posicionamento sobre a nulidade e seus efeitos, da norma inconstitucional, ele tomou posse em 1989, depois de promulgada a Constituição, portanto, não atravesõu os dois períodos. Esse era realmente um bom ministro, exceção devidamente apontada.
De resto, o debate está bastante interessante, e as divergências, naturais em todo e qualquer debate sério, permanecem, em especial na essência do positivado princípio da igualdade, e na ideologia da atual Carta Constitucional.
E aqui eu faço uma provocação, para prolongarmos o debate sobre os moldes ideológicos e contraditórios (a meu ver), da Carta de 1988: Existe a possibilidade de haver em nossa carta Constitucional uma norma (Constitucional) Inconstitucional, nos moldes tracejados por Otto Bachoff?
George e Jânio,
A pesquisa e o artigo mencionados, não tem o condão de atribuir a pecha de “esquerda” ou “direita” a ideologia dos Juízes Brasileiros, tal qual não era o lado da Planície (e depois do Parlamento) que contribuia para que alguém fosse “tories” – conservador – Direita, ou “whigs” – liberal – Esquerda.
Acredito que o artigo no site da Febraban serve mais como uma espécie de aviso aos políticos, para que tolham poderes dos Magistrados, como uma espécie de precaução.
Penso que as decisões que dão efetivação as normas Constitucionais Sociais é que demosntram se o julgador é de esquerda ou de direita.
Cícero dizia que “o Juiz é a boca de lei, e a lei é o Magistrado mudo.” Em todos os lugares e em todos os tempos, há sempre algo que faça o juiz falar (ou cala, num mutismo ensurdecedor), e nesse sentido, a tagarelice ou o mutismo são a chave que abre o cofre, que contém a essência (alma) da Constituição. Para o bem, ou para o mal, mas indefectívelmente travestida de lei.
Quem, e porque ou por qual motivo, se faz o Julgador calar ou falar é que é uma indagação interessante. Discorde-se da retórica de Cícero, mas não se pode refutar a atuação transformadora que pode vir a exercer o Julgador. Ele têm a voz que o famélico não tem, por mais que falem os dois. Montesquieu, ao mencionar o juiz como a boca da lei, disse, no que tange aos Julgamentos, que se estes “fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos”.
Contudo, pode vir a existir lei odienta, como as que tratam com vilipêndio o cidadão menos abastado, ou melhor dizendo, usando palavra mais adequada, trata com vilipêndio àqueles que vivem de forma deplorável. E ai a boca não pode pronunciar tal palavrão, que têm forma e essência de lei.
George,
O trabalho a que você se refere (Febraban) foi realizado por Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende:
“ARIDA, Pérsio; BACHA, Edmar e RESENDE, André Lara.”Credit, interest, and jurisdictional uncertainty: Conjectures on the case of Brazil”, Rio de Janeiro: IEPE/CdG, Texto para Discussão n.2, 2003, Publicado em GIAVAZZI. F.; GOLDFAJN, I; HERRERA, S. (orgs.); Inflation targeting, debt, and the Brazilian experience, 1999 to 2003. Cambridge, MA: MIT Press, may 2005.”
A pesquisa a que aludi (Brisa Lopez de Mello Ferrão – FP/USP e Ivan César Ribeiro – FD/USP) tentou exatamente “desmistificar” as idéias sustentadas pelos “ilustres professores”.
Segue o resumo do trabalho [“ROBIN HOOD versus KING JOHN:
COMO OS JUÍZES LOCAIS DECIDEM CASOS NO BRASIL?”]
“O presente trabalho se insere na discussão das reformas do judiciário, considerando que a proteção aos contratos, à propriedade intelectual e à propriedade em geral são imperativos voltados a reduzir as incertezas e os custos de transação, que oneram a contratação e a atividade produtiva. Avança, entretanto, ao ligar a necessidade de um judiciário imparcial e eficiente à redução da desigualdade.
Este artigo discute duas hipóteses opostas quando se tenta prever o comportamento dos juízes ao decidirem um caso com duas partes de diferentes níveis de poder econômico e político. A primeira, com grande aceitação entre os formuladores de políticas públicas no Brasil, é a hipótese da incerteza jurisdicional (Arida et al, 2005), sugerindo que os juízes brasileiros tendem a favorecer a parte mais fraca nas ações judiciais como forma de fazer justiça social e redistribuição de renda em favor dos pobres. Glaeser et al (2003) aventaram uma segunda hipótese, sugerindo que a operação das instituições legais, políticas e regulatórias é subvertida pelos ricos e politicamente influentes em seu próprio benefício, uma situação que os pesquisadores chamaram de redistribuição do King John.
Para testar essas hipóteses, foi conduzido um teste empírico analisando decisões judiciais de 16 Estados Brasileiros, através de modelos de regressão Probit com variáveis endógenas, calculados usando a abordagem sugerida por Newey para a metodologia AGLS de Amemiya (1979).
Os resultados mostram que:
a) Os juízes favorecem a parte mais poderosa. Uma parte com poder econômico ou político tem entre 34% e 41% mais chances de que um contrato que lhe é favorável seja mantido do que uma parte sem poder;
b) Uma parte com poder apenas local tem cerca de 38% mais chances de que uma cláusula contratual que lhe é favorável seja mantida e entre 26% e 38% mais chances de ser favorecido pela Justiça do que uma grande empresa nacional ou multinacional, um efeito aqui batizado de subversão paroquial da justiça.
c) Nos Estados Brasileiros onde existe maior desigualdade social há também uma maior probabilidade de que uma cláusula contratual não seja mantida pelo judiciário. Passando-se, por exemplo, do grau de desigualdade de Alagoas (GINI de 0,691) para o de Santa Catarina (0,56) tem-se uma chance 210% maior de que o contrato seja mantido.
Verifica-se no Brasil o inverso do que se observou na Europa entre os séculos XI e XIV, quando a criação de instituições que asseguraram os direitos de propriedade e a manutenção dos contratos favoreceu o ressurgimento do comércio. O exercício do poder local parece impedir o desenvolvimento, especialmente nas áreas de maior desigualdade social. A subversão paroquial da justiça também ajuda a aumentar essa desigualdade, em um círculo vicioso perverso para os mais pobres.
Ao final, são sugeridas políticas públicas para aumentar a credibilidade e eficiência da Jurisdição Estatal, tais como promover a concorrência de jurisdições, fomentar o uso da arbitragem, defender os hipossuficientes sem ferir a livre contratação.”
Jânio
George,
A análise são das próprias decisões judiciais (mérito) em 16 Estados brasileiros. Não se refere aquilo que os juízem “acham”, mas, exatamente, ao que eles “fazem” – as decisões “concretas” (reais).
Jânio.
George,
Todas as objeções são estimulantes. Não tenho dúvida que será uma tarefa árdua refutá-las uma por uma.
Acho que cada item que você apontou comporta, quase, uma tese acadêmica, a favor ou contra. Enfrentar todas elas de uma vez, então… Por certo que algumas têm íntima ligação. Uma pelo menos – a primeira – é uma objeção-síntese, a meu ver. Ela engloba várias outras, como por exemplo a segunda, a quarta, a décima terceira e a décima sétima. Mas vê-las individualizadas é melhor, porque permite avaliar os vários aspectos desse caráter anti-democrático.
Já a quinta e sexta são muito interessantes. Elas incidem mesmo quando a jurisdição constitucional permite o avanço e a conquista de direitos.
A oitava, a nona e a décima oitava abordam uma dimensão realmente instigante: os limites da capacidade, das habilidades do juiz. Uma lei não se restringe aos lindes jurídicos. Desborda para aspectos econômicos e sociais, e nada garante, de fato, que os juízes tenham a perspectiva completa, no momento de julgar.
No final, tudo vai desaguar, mesmo, na figura do juiz e seu ofício específico.
Por fim, sugiro que você faça um post específico com essas objeções, acompanhadas das respectivas refutações. Como disse, a enumeração de todos esses reparos à jurisdição constitucional é intelectualmente muito estimulante.
Cristiano
Thiago,
Continuo achando que a busca de igualdade material está no texto da Constituição. Somente não há ambiente cultural (ou estrutural mesmo) para persegui-la como se deve. Vide os dispositivos pertinentes à reforma agrária, o princípio da função social da propriedade, etc. Para mim, por exemplo, e concordando com Fábio Comparato, o direito de propriedade é condicionado ao atendimento da função social dela. É possível enxergar isso no texto.
Acho que você tem razão quanto ao Sepúlveda (devo ter me confundido porque ele foi nomeado pelo Sarney). Só um comentário lateral: um voto dele na ADIn nº 4 (se não me engano) é simplesmente antológico, e cita um livro do Marcelo Neves igualmente notável – Teoria da inconstitucionalidade das leis, de 1988 (então recém publicado). Vale ler o acórdão como um todo, mas especialmente o voto do Sepúlveda. Foi o julgamento que decidiu não ser possível o controle concentrado de normas anteriores à Constituição de 1988.
Aliás, acho que esse livro do Marcelo Neves está sendo atualizado pelo Gabriel Ivo, que o George deve conhecer, dos tempos da Procuradoria do Estado de Alagoas.
Quanto à sua provocação, tomo logo partido, por entender que é impossível uma norma constitucional (original) inconstitucional. Aliás, salvo engano, o título do livro alemão contém uma interrogação: “Normas constitucionais inconstitucionais?”
Cristiano
Cristiano,
O mencionado livro do Marcelo Neves é realmente fantástico, e consegue sê-lo em algumas poucas páginas. A Teoria da Inconstitucionalidade das leis navega pela semiótica, entre signos e significantes. E ai está o maior mérito, qual seja, o de perceber e alertar os iniciantes como eu, de que esta nova perspectiva pode esclarecer muitas coisas, inclusive a simbologia das Normas Constitucionais, fruto de outro livro de Marcelo Neves (Constitucionalização Simbólica), e que mais recentemente, compartilha conosco outras reflexões, qual seja, a complexa relação de quem transita ou permanece entre “Têmis e Leviathan”, ou mais especificamente, pode ser entendida também como a tensão entre o discurso democrático e a jurisdição Constitucional, explorando (ou dialogando com Luhman e Habermas, claramente à partir da idéia Semiótica).
Tem um pequeno excerto de Jorge Luis Borges (Obras Completas III, p. 495) chamado “Ars Magna”, em que o pensador argentino menciona uma passagem, influenciada por Emerson, que remete aos signos, significados e significantes, e ai lembro mais de Marcelo Neves. Ele menciona que a linguagem é poesia fóssil. E diz, mais, que para se compreender tal assertiva, bastaria lembrar que todas as palavras abstratas são, de fato, metáforas, inclusive a própria palavra metáfora, que do grego, remonta a “translação”.
E provoca em mim uma vontade de exprimir a Carta de 1988 por meio de versos e rimas, quando diz que:
“O Século XIII, que professava o culto da Escritura, isto é, de um conjunto de palavras aprovadas e eleitas pelo Espírito, não podia pensar desse modo. Um Homem de gênio, Raimundo Lúlio, que tinha dotado Deus de certos predicados (a bondade, a grandeza, a eternidade, o poder, a sabedoria, a vontade, a virtude e a glória), idealizou uma sorte de máquina de pensar feita de círculos concêntricos de madeira, cheios de símbolos dos predicados divinos e que, girados pelo pesquisador, daria uma soma indefinida e quase infinita de conceitos de ordem teológica. Fez o mesmo com as faculdades da alma e com as qualidades de todas as coisas do mundo. Previsivelmente, todo esse mecanismo combinatório não serviu para nada. Séculos mais tarde, Jonathan Swift zombou dele na terceira viagem de Guilliver. Leibniz, elogiou-o, mas, claro, absteve-se de reconstruí-lo. A ciência experimental que Francis Bacon profetizou deu-nos agora a cibernética, que permitiu aos homens pisar na lua e cujos computadores são, se a frase é lícita, tardios irmãos das ambiciosas rodelas de Lúlio. Mauthner observa que um dicionário de rimas, é também uma máquina de pensar.”
Enfim, muito boas as reflexões de Marcelo Neves, que sempre passei a agregar outras de outros pensadores.
No que tange a provocação, você entende que não pode ahaver normas Constitucionais Inconstitucionais, mesmo que determinada norma viole a dignidade da pessoa humana, como por exemplo, uma norma que traga preceitos nazistas ou que reviva a clássica instituição da escravidão?
Abraços, e parabéns pelo debate.
Thiago.
Belo debate.
Cristiano, conheço sim o Gabriel Ivo. Tenho ótimas lembranças da época da PGE-AL. Excelente pessoa e excelente jurista.
George
Jânio e Thiago,
sobre essa história de “juízes são de esquerda ou de direita”.
É difícil dizer. No fundo, todos somos conservadores, mesmo que nossos discursos sejam de esquerda.
Mas abstraindo essa questão filosófica, fiz uma rápida análise sociológica sobre os juízes do Ceará. Analisei, na minha mente, os juízes titulares da 1a Vara até a 12a Vara, eu incluído.
Conclusão: 7 “de esquerda” e 5 “de direita”.
Como se vê, não há uma uniformidade de pensamento.
(e olha que estamos falando de juízes federais, que, em princípio, são mais jovens e, portanto, menos conservadores).
George
Sobre a Constituição Simbólica.
Não li o livro do Marcelo Neves, mas faço idéia do que ele quer dizer. E se for o que imagino, concordo.
Os direitos fundamentais, assim como a democracia, a liberdade, a dignidade humana, são palavras que dão suporte de legitimidade a qualquer discurso. E, nesse sentido, servem como instrumento de poder e de dominação.
Já que tanto se falou de AI-5, que comemorou seus 40 aninhos, ele também invocou a “dignidade da pessoa humana” em seus considerandos.
Os direitos sociais costumam ser sempre invocados para se criarem tributos.
Se o simbolismo da Constituição for nesse sentido, concordo com perfeição. É a Constituição como pretexto.
Recentemente, o Boaventura fez uma palestra sobre isso, dizendo como “os direitos humanos” têm sido utilizados como pretexto de dominação. Citou a invasão do Iraque, mas não só isso.
Depois escreverei sobre isso com mais tranquilidade.
Geoge
George,
Aguardo você escrever com mais vagar sobre o tema, inclusive mencionando as sempre reflexivas manifestações de Boaventura.
Marcelo Neves, no livro Constitucionalização simbólica, compartilha uma série de reflexões acerca do papel da Constituição, ou em suas próprias palavras “o significado social e político de textos Constitucionais, exatamente na relação inversa de sua concretização”, ou ainda, “a questão refere-se à discrepância entre a função hipertroficamente simbólica e a insuficiente concretização jurídica de diplomas Constitucionais”.
Nesse sentido, o autor adverte-nos de que não se trata da tradicional discussão acerca da ineficácia das normas Constitucionais.
Passa pela distinção entre texto e norma, e nesse ponto, analisa os efeitos sociais das legislações Constitucionais normativamente ineficazes, e nese contexto “discute-se a função simbólica de textos constitucionais carentes de concretização”.
O livro tem 3 capítulos, em cerca de 263 páginas, sendo que as referências bibliográficas e o índice onosmático ocupam 63 páginas. Dai a percepção de que se trata de uma pesquisa ampla, com consulta a uma série de autores, mas que dá destaque maior a Luhman e também a Habermas, e também menciona Boaventua de Sousa Santos, em especial para negar seu “pós-modernismo-jurídico”.
Quanto ao primeiro, apresenta um cotejo com a teoria dos Sistemas, mais profundo em Maturana e Varela, apresentando conceitos e proposições sobre “autopoiese” e “alopoiésis”, transitando entre abertura e fechamento do sistema, e sobre a “periferização do centro”. Quanto ao segundo, aborda o famoso conceito do “agir comunicativo”
No que tange as tipologias apresentadas acerca da legislação simbólica, utiliza-se conceituação tricotômica apresentada por Harald Kindermann (original em alemão), no sentido de que “Conteúdo de Legislação Simbólica pode ser: a) Confirmação de valores sociais; b) demonstrar a capacidade de ação do Estado; e c) adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios;
Importante notar que são interessantíssimos os conceitos das espécies mencionadas, e que de fato, após uma leitura, encontramos com facilidade todos os tipos em nossa Carta de 1988, desde confirmações de valores de gupos sociais dominantes, que servem mais como status do que outra coisa, e também normas que demonstram um poder de reação do Estado, em autêntica “legislação Alibi”, ou ainda, normas que adiam deliberadamente a solução de conflitos sociais, repasando indefinidamente para o futuro sua resolução.
Enfim, não poderia aqui, em poucas linhas tratar de assuntos tão complexamente abordados, passando por assuntos vários. Em especial, a dicotomia “subintegrados/sobreintegrados”, e as análises do códigos “lícito/ilícito (Jurídico), ter/não ter (Econômico) e poder/não poder (Político)”
Não é um livro que eu tenha achado fácil de ler, e nem de agradável leitura inicial. Contudo, suas reflexões sobre o conceito de legislação simbólica, diferente dos simbolismos apresentados nos anos 60 e 70, e análise dos vários tipos desta tipologia, apresentando casos concretos exemplificativos, torna menos cansativa a “reflexão sobre as reflexões”.
Caro George,
Parabéns pelo Blog e pelo livro – que recentemente comprei e cuja leitura já foi iniciada (está bom!). Agora, só uma curiosidade:percebi que a sua abordagem metodológica em relação ao Direito me lembra muita coisa da obra do filósofo Karl Popper. Estou errado?
Estou perguntando isso porque já li vários livros dele e você foi o primeiro jurista no qual percebi a aplicação prática de suas idéias ao Direito (e não mera referências de leitura em notas de rodapé).