“Primeiro dia de aula! Primeiro dia de Aula! Acorda! Acorda!”
Nemo para seu pai, Marlin, no filme “Finding Nemo”
Tente pensar numa assembléia imaginária, formada por indivíduos altamente capacitados e dotados de habilidades sobre-humanas. Todos são bons por natureza e, por isso mesmo, são bem intencionados e querem o bem comum, motivados por uma virtude cívica digna dos anjos e dos santos. Todos querem respeitar o próximo e a busca cooperativa da verdade. E estão reunidos para pactuar e definir quais seriam as regras de conduta que melhor regulamentariam a vida em sociedade. Todos têm direito de igual manifestação e participação. Ninguém é melhor do que o outro. Ninguém pode ou quer trapacear. Ninguém está pensando egoisticamente em satisfazer seus próprios interesses. Todos têm direito de voz e de voto e possuem todo o tempo do mundo para deliberar com calma e decidir com prudência. A comunicação flui livremente. Todos se entendem com clareza, objetividade e perfeição. Não há pressões nem coações. Todos são sinceros, sérios e razoáveis. No final, haverá um consenso, devidamente fundamentado, onde vencerá o melhor argumento, após um amplo debate racional, com base em todas as informações disponíveis que serão compartilhadas pelos debatedores.
Para que ninguém seja favorecido ou prejudicado injustamente, resolve-se definir o seguinte: ninguém sabe ao certo qual a posição que ocupará no futuro, como se cada um estivesse vestindo um “véu de ignorância”. Ninguém sabe se será homem ou mulher, branco ou preto, rico ou pobre. As regras são estabelecidas “no escuro” e valerão indistintamente para todos. Com isso, todos pensarão duas vezes antes de estabelecer uma regra prejudicial para um determinado grupo de pessoas. Afinal, ninguém sabe o que acontecerá no futuro. É algo parecido com a velha técnica que sempre funciona quando se vai repartir um bolo entre crianças: um corta o bolo e o outro escolhe o pedaço. Com isso, o que corta o bolo tentará ser o mais igualitário possível, já que ele poderá, no final das contas, ficar com o pedaço menor. A “regra de ouro”, portanto, é fazer com que todos participem do debate e aceitem a solução, independentemente de sua posição na sociedade.
Pode-se, ainda, incrementar um pouco esse modelo para torná-lo ainda mais justo. Por exemplo, pode-se pensar em construir um modelo jurídico único para todo o planeta, de modo que, no futuro, os membros dessa assembléia imaginária possam ser, na vida real, aleatoriamente, ricos empresários norte-americanos ou pobres mulheres em uma comunidade miserável da África. Com isso, se criará um vínculo de solidariedade mundial ligando todos os seres humanos. Todos se tornarão responsáveis pela felicidade e sofrimento de todos. E se quiser ainda pode-se tentar criar vínculos de respeito mútuo e de empatia com seres não-humanos, a fim de não se estabelecerem regras de conduta exclusivamente entre os humanos, mas entre todas as espécies do planeta.
É até intuitivo que, numa assembléia tão rica e perfeita, alicerçada com parâmetros ideais, qualquer resultado que dela brotar será sempre a melhor resposta possível. Aliás, pode-se até concluir que, fatalmente, dela resultará a única resposta correta para a solução dos grandes conflitos da humanidade.
A justiça, em sua essência, é fruto dessa assembléia imaginária.
Certamente, os que já são iniciados em filosofia do direito e filosofia política perceberam que fiz uma mistureba bastante heterogênea de pensamentos que vão desde Rousseau até Rawls, passando por Perelman, Habermas, Apel, Alexy, Dworkin, Peter Singer, entre outros. É, sem dúvida, uma visão incompleta de complexas teorias jusfilosóficas que tentei, propositadamente, simplificar ao máximo.
Meu intuito não é criticá-las ou discuti-las a fundo, até porque, confesso, fico meio tonto só de tentar compreendê-las minimamente. O que quero demonstrar é que elas partem de um modelo de mundo que não corresponde à realidade. De fato, o que todas essas teorias têm em comum é que se baseiam em uma fantasia. São construções mentais idealizadas, desenvolvidas com a melhor das intenções, mas sem qualquer vínculo com a realidade. “Discurso ideal” (Habermas), “posição original” (Rawls), “auditório universal” (Perelman), “vontade geral” (Rousseau), “bom selvagem” (Rousseau), “Juiz-Hércules” (Dworkin) etc. são meras ficções.
Não há nada demais em criar modelos ideais. Isso é bom, até porque eles podem servir de parâmetro para o que acontece na vida real e fornecem instrumentos para criticar e melhorar as instituições existentes.
O ser humano sempre almeja o ideal, o utópico. Repito: isso é bom e útil.
Aliás, tanto o processo legislativo quanto o processo judicial têm ganhado muito em qualidade com a incorporação de idéias e princípios que buscam aproximá-los dos parâmetros ideais de legitimidade imaginados acima.
Basta dizer, no que se refere, por exemplo, ao processo judicial, o quanto já se avançou em matéria de contraditório, ampla defesa, publicidade e fundamentação das decisões, com vistas a permitir a efetiva participação dos envolvidos na solução final. Isso sem falar na idéia de “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” (Häberle), que tem permitido uma maior ampliação do rol de debatedores no âmbito do processo judicial, seja através de audiências públicas nas discussões mais relevantes, seja através da participação formal de instituições como “amicus curiae”. Por fim, merece ser mencionado o desejo sempre crescente de incentivar as conciliações, de modo a permitir que as próprias partes cheguem a soluções consensuais livremente obtidas mediante diálogo, sem que o juiz precise impor uma decisão unilateralmente.
O processo legislativo também tem desenvolvido mecanismos para aumentar ainda mais o índice de legitimidade democrática de suas deliberações, prevendo, inclusive, instrumentos de deliberação direta do povo na tomada de decisões importantes, como os plebiscitos ou os orçamentos participativos, por exemplo.
Tudo isso é fruto de uma tentativa de aproximação das instituições com os modelos ideais de democracia imaginados pelos filósofos no mundo todo.
O problema não é sonhar com mundos perfeitos, habitados por seres perfeitos, regidos por regras perfeitas, elaboradas e aplicadas por instituições perfeitas. O problema é perder o foco com a realidade e construir modelos perfeitos que não servem nem jamais servirão para uma realidade imperfeita. E o pior não é isso. O pior é fazer de conta que as instituições reais funcionam tal como os modelos ideais.
Um exemplo de problema gerado por essa idealização da teoria jurídica é achar, por exemplo, que as leis elaboradas pelo parlamento são um retrato fiel da assembléia imaginária desenhada acima.
Ninguém é louco o suficiente para achar que a democracia representativa é uma cópia fiel do modelo ideal acima mencionado. Aliás, nenhum dos filósofos mencionados diz isso expressamente. Mas muita gente acha que é um modelo quase-perfeito, o mais próximo da perfeição que se pode alcançar. Há quem pense que o processo legislativo tal como existe hoje tem tanta legitimidade quanto a assembléia imaginária do jusfilósofos, e que qualquer resultado que for obtido pelo legislador é legítimo.
Imaginar mundos perfeitos é fácil. O difícil é lidar com as imperfeições do mundo real e com as pessoas imperfeitas que nele habitam. De minha parte, infelizmente, tenho que acordar, pois sei que Juízes-Hércules não existem na vida real. Se bem que… até o Kung Fu Panda se tornou o Dragão Guerreiro… Acho que, ao invés de ficar lendo filosofia do direito, o melhor é tentar encontrar o Pergaminho do Dragão para descobrir o segredo do poder ilimitado… É quase a mesma coisa…
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Um rápido upgrade diante dos comentários:
Não estou criticando a filosofia do direito em si mesma. Particularmente, sou fã da filosofia do direito. Também não estou criticando diretamente as idealizações. O que estou criticando é o uso que se costuma fazer das idealizações. Idealizar o que não é ideal não é ideal. Foi isso que pretendi dizer. Se não fui claro, é porque não sou perfeito…
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Mais um comentário intempestivo: acabei de ler uma crítica à filosofia bem mais pesada do que a que formulei acima. No caso, os filósofos foram acusados de “filosofar sem conhecimentos dos fatos” e as suas filosofias foram descritas como “meras fantasias, até mesmo fantasias imbecis”.
A crítica foi formulada por Hegel, conforme POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 100.
Adianto que não concordo com essa idéia. Só a reproduzi aqui porque tem a ver com o post. Aliás, o próprio Popper, ao citar isso, estava querendo defender a filosofia contra os ataques formulados por Wittgenstein, que dizia que toda filosofia seria destituída de sentido.
Há uma passagem, no mesmo texto, que ilustra bem a importância da filosofia. Wittgenstein escreveu que “daquilo de que não se pode falar, deve-se guardar silência. Ao que Schrödinger retrucou com razão “mas é justamente nessa altura que merece a pena falar!”.
Como afirmei no texto, as idealizações são úteis e importantes, pois é, a partir delas, que se criam os parâmetros para se criticar a realidade. O equívoco é fazer de conta que a realidade equivale ao mundo imaginário.
A voz do Jack Black ficou perfeita no K.P., assim como a miscelânia jusfilosófica ficaria num mundo Real.
Este natal promete ser bastante lúdico, no que tange aos filmes que irão estrear, e a mente humana, que sempre sonhou com cacteres perfeitos, seja na senda individual, seja no ambiente coletivo, poderá ver mais um exemplo no filme The Curious Case of Benjamin Button (imagine-se você nascer velho e ir ficando jovem com o decorrer dos anos? A estória é mais do que isso, mas esse é um dos pontos mais importantes)
O conto original foi escrito na década de 20 do século passado por F. Scott Fitzgerald, mas o ideário do rejuvenescer tem habitado o corpo e a mente de nossa sociedade contemporânea. Esse é um exemplo que, ao lado do mundo imaginário dos Juristas, serve para demonstrar que a mente humana sempre busca o aparentemente inatingível…….
Que sorte a nossa ter ao alcance o poder dos sonhos.
A questão também tem a ver com o caráter próprio das teorias sociais. Toda teoria social tem um “distanciamento” da prática, na forma como vc coloca no post. Afinal, se a teoria social e prática fossem a mesma coisa, não precisaríamos de teoria. O processo de racionalização da modernidade fez com a prática social deixasse de ser apenas mecânica e pudesse ser também reflexiva. Isso por si só já indica o valor próprio das teorias sociais. De todo modo, certamente a idealização implica o problema apontado por vc. No entanto, alguns dos autores mencionados podem até ser acusados dessa idealização, mas eles na verdade partem de pressupostos teóricos que rejeitam essa visão de dois mundos, a de um mundo sensível e outro inteligível, que remonta a Platão. Não dá para repassar esses pressupostos, aqui. Mesmo assim, a hermenêutica construtiva, por exemplo, se pauta pela atribuição de um valor, propósito ou princípio a uma prática social, justificando-a. O requisito para evitar a teoria dos dois mundos é que a elaboração dessa justificativa seja ajustada ou adequada à prática social correspondente. Com a filosofia da linguagem do século XX, esse procedimento teórico se tornou mais facilmente descrito. Mas, para não falar da linguagem complicada de Habermas, veja que Dworkin no cap. 2 do seu Law’s Empire já descreve o que chama de atitude interpretativa. E quando outorga a Hércules a tarefa de resolver casos reais bastante complicados, nas áreas da common law, leis e constituição, acertadamente reconhece que os juízes reais decidem a maioria dos casos de maneira bem menos metódica. Mas, nem por isso Hércules (melhor dizendo: a teoria do direito como integridade) é apenas um mito (melhor dizendo: a teoria do direito como integridade é uma mera idealização abstrata), pois a teoria (Hércules) mostra a estrutura oculta das sentenças dos juízes reais, deixando-as assim abertas ao estudo e à crítica. Essa é a utilidade de toda teoria social bem construída, qual seja, sua maior reflexividade e autoconsciência. Ainda no caso do direito como integridade, um juiz verdadeiro jamais terá o tempo que Hércules tem na teoria, mas este não tem acesso a mistérios transcendentais que são obscuros para aquele, como corretamente pontua novamente Dworkin. Os juízes sobre adequação e moral política são feitos da mesma matéria e têm a mesma natureza para ambos os juízes, o verdadeiro e o descrito na teoria, ainda que Hércules possa trabalhar sem as limitações daquele.
Não quero defender que os juízes devem tentar agir como Hércules, ou de acordo com qualquer outro modelo teórico de grande atração e força. Isso realmente pode ser impossível. Apenas considero que a teoria social tem o seu valor, nas complexas condições da vida moderna. No campo da teoria política ou jurídica, aliás, são várias as teorias. O que muitas vezes acontece é de elas disputarem no próprio espaço público a verdade de suas afirmações. Não há apenas uma teoria constitucional, por exemplo, mas várias teorias constitucionais, com compromissos distintos e levando a resultados diferentes, em casos reais. A disputa pelo direito e no direito também é uma disputa teórica. E é interessante que isso seja bem compreendido.
Pera lah, George…
O ALEXY eh considerado por vossa senhoria um impostor intelectual. O Habermas, um filosofo ingenuo, que cria teorias fantasmagoricas.
quem eh que presta entao???
David,
concordo com você sobre a utilidade da metafísica. Como afirmei, ela é necessária para servir como modelo crítico para a realidade e para melhora constante das instituições reais.
O problema é justificar práticas reais que não correspondem à fantasia idealizada. Dworkin faz isso com o seu Juiz-Hérculos, bem mencionado por você. Ele justifica o “judicial review” a partir dessa figura imaginária que ele próprio sabe que não existe. E convenhamos que, na teoria dele, há uma idolatria pela jurisdição constitucional que pode levar a resultados danosos (vide Dred Scott, Era Lochner, Scalias e cia).
Acho que toda instituição deve ser “julgada” pelos resultados concretos que produz. Se o Legislativo cumprir seu papel constitucional, não há necessidade de juízes constitucionais. Do mesmo modo, se os juízes constitucionais “pisarem na bola” e forem “capturados” por grupos poderosos, o resultado de suas sentenças será desastroso e merecerá todas as críticas cabíveis.
É justamente essa falta de percepção dos resultados concretos que as instituições produzem que me leva a criticar a filosofia do direito que idealiza procedimentos em detrimento da substância.
O assunto é bom…
George
Chaves,
acho que você precisa aprender a ler melhor. Nunca chamei o Alexy de impostor intelectual, nem o Habermas de ingênuo. Você já pensou em visitar um oculista?
Quanto à “quem presta”, para você indico vários: Harvey Kurtzman, Alfred E. Newman, William Gaines e, entre os brasileiros, especialmente em sua fase oitentista, sem influência do paradigma global dominante, sugiro uma leitura de Roberto Adler, Cláudio Bessermann Viana, Cládio Manual Mascarenhas dos Santos, Hélio Antônio do Couto Silva, Hubert de Carvalho Aranha e companhia. Acho que eles estão bastante acima do seu nível, mas é uma leitura que recomendo…
George
George,
Não quis me referir e não me referi à metafísica. Se tem algo que a hermenêutica e o giro lingüístico puseram de escanteio, com bons fundamentos, foi a metafísica, a teoria dos dois mundos. Quando me refiro à validade da teoria social é justamente aquela que se desfez da metafísica. Nem por isso deixa de ser a teoria social da modernidade; uma teoria social pós-metafísica. Certamente ainda lida com categorias normativas, especialmente quando seu intento é reconstruir a racionalidade dos processos históricos concretos. Sim, porque o giro lingüístico ajudou a pôr em evidência exatamente o potencial normativo de nossas práticas já existentes. Mas por tentar reconstruir os vestígios de uma razão incrustada na história, a teoria social fundada na hermenêutica e na filosofia da linguagem não pode mais simplesmente ser acusada de depender de uma “fantasia idealizada”. E talvez não seja o caso de negar que nossas práticas já existentes possuem algum conteúdo de racionalidade. De outro modo, como seria possível até mesmo afirmar que “toda instituição deve ser ‘julgada’ pelos resultados concretos que produz”? A partir de qual critério fazer o julgamento? Na verdade, é preciso um critério de julgamento, sob pena de a crítica não fazer sentido. A teoria social tenta esclarecer o ponto de vista a partir do qual avaliar. Nesse sentido, ela até que tem de ser modesta, pois deve apenas esclarecer o critério, e não julgar diretamente ela mesma os problemas. Mas, nem por isso se despe de conteúdo normativo, ainda que intramundano. Esses teóricos mencionados por vc não tentam elaborar modelos críticos para a realidade, mas sim explicitar os conteúdos normativos existentes nas práticas cotidianas. Como a teoria é mais detidamente reflexiva e autoconsciente, a explicitação desses conteúdos pode até assumir a forma de sistemas bem elaborados, internamente coerentes. Esse, aliás, um dos elementos para julgar a força de uma teoria. Mas, repito, não se trata pura e simplesmente de fantasiar a realidade. Veja novamente o caso de Dworkin. Concordo que sua teoria outorga um poder excessivo à jurisdição constitucional. Todavia, Hércules apenas corporifica o sistema bem elaborado da teoria do direito como integridade, sendo certo que os juízos sobre adequação e moral política construídos a partir dessa teoria têm a mesma matéria e a mesma natureza dos juízos ordinários da prática judicial corrente. Quanto a isso, é interessante que Hércules é chamado a resolver casos do mundo real, no Law’s Empire. O caso da common law é talvez o mais impossível de ser julgado como Hércules apregoa, mas não pela natureza diferenciada do argumento, e sim pela exigência de conhecimento altamente especializado sobre teorias acadêmicas da justiça. Mesmo o caso exemplar do direito constitucional (Brown) tem a decisão e o argumento que Hércules desenvolve. Não se pense que o direito como integridade defende a integridade pura. Com todas as letras, a defesa de Dworkin é da integridade inclusiva, aquela que leva em conta o devido processo e a eqüidade. Por isso, ainda que pelo critério exclusivo da justiça se pudesse criticar o caráter de compromisso da decisão Brown, Hércules aceita ser próprio da prática jurídica o equilíbrio com os preceitos do devido processo e da eqüidade, que naquele caso implicaram a adoção de instrumentos posteriores de implementação progressiva do princípio estabelecido na decisão, em outras situações.
Como vc disse, o assunto é bom. E melhor ainda é poder refletir detidamente sobre ele. Talvez só o espaço da teoria permita isso…
George, me permita apenas fazer, primeiramente, os maiores elogios ao seu blog, aos seus textos e, logicamente, às suas opiniões. Já tem um bom tempo que leio o que publica por aqui, sem nunca parar para agradecer e parabenizar. Viva a utilizaçao do espaço público, não é mesmo??
Agora pergunta de aluno para professor. Desses autores jusfilósofos brasileiros que indicou acima, qual você aconselha de início? Óbvio que já tive contato com alguns dos autores citados no texto (Perelman, Habermas, Rawls, Alexy, Dworkin, Rousseau) e alguns outros (Boaventura, Arendt…), mas dos nacionais todos os nomes são novos para mim!
Em que pese a necessidade de eu me aprofundar em todos os autores, você, que não é Juiz-Hércules (rs), pode me dizer desses nomes nacionais o que temos de mais atual ou de mais representativo para o pensamento da filosofia do direito? Assim eu posso partir de um ponto seguro e satisfazer a vontade constante de saber o que se produz de bom aqui no Brasil.
Obrigado e boa sorte em Portugal.
Caro David,
Dependendo do sentido que se dê à palavra metafísica, não há como colocá-la de escanteio, sem colocar de escanteio, também, a condição humana. É a criação de um outro mundo, que está além do que pode ser apreendido pelos sentidos, que caracteriza o homem e o diferencia dos outros animais.
O significado de um ato linguístico não é apreensível pelos sentidos. Se fosse, um gato com excelente visão poderia ler Machado de Assis. Ou, não sendo tão exagerado, eu, que não sei japonês, poderia ler e compreender perfeitamente um livro escrito nessa língua.
O que me falta não são sentidos, mas algo que está além deles… E metafísico, no sentido dado por Andronico de Rodes, é simplesmente isso: o que está além do mundo físico, captável pelos sentidos. Uma idéia ainda não concretizada, usada como paradigma ou modelo por quem pretende alterar a realidade, é, nesse sentido, metafísica.
Aliás, Hugo, foi nesse sentido que usei o termo, com direta inspiração no post que você fez recentemente.
George
David,
eu confesso que não consegui ver essa revolução toda causada pela “virada linguistica”. É um defeito meu, talvez. Mas acho tudo tão óbvio, que às vezes me pergunto se é isso mesmo. Não li muita coisa de Habermas. Só o Faticidade e alguns textos de “Inclusão do Outro” e “A Constelação Pós-Nacional”. Umas oitocentos páginas, no máximo. Com toda certeza, não entendi tudo. E na parte que entendi achei que ele estava chovendo no molhado.
Com relação ao Dworkin, talvez por ele tratar mais especificamente da atividade jurisdicional e dos direitos fundamentais, achei mais interessante. Dele li quase tudo, especialmente os livros em português (se bem que os “levando os direitos a sério” li a versão espanhola). E confesso que gostei mais dos livros mais recentes, que são mais práticos, como o “Domínio da Vida”, “Leitura Moral da Constituição” e a “Virtude Soberana”. Vi bons argumentos, ainda que a teoria seja confusa em alguns pontos. Mas reafirmo que talvez seja tudo uma incapacidade minha de assimilar corretamente os filósofos, por falta de uma base mais profunda em Kant, Hegel e outros.
Minha formação é mais pragmática (pode-se dizer: mais superficial). Mas cada vez que tento aprofundar mais os meus conhecimentos, percebo que a filosofia do direito não ajuda muito, pois o que eles dizem é muito óbvio. Espero me surpreender com algum teórico, assim como me surpreendi, por exemplo, quando li Carl Sagan, Ernest Mayr, Daniel Dennet, Karl Popper, Simon Sign, Steven Gould, Dawkins, Matt Dilley etc. A turma mais ligada às “ciências nobres” ainda me encata mais.
Aliás, provavelmente o próximo post será justamente sobre isso. Algo como “A Anti-Ciência do Direito”.
George Marmelstein
No caso dos Jusfilosofos Anglo-Americanos, notadamente Ingleses e Americanos do Norte, pesa muito o fato de pouco, ou nada, levarem em conta as respostas dadas por pensadores de outras partes do mundo para os mesmos problemas que analizam. Essa crítica em particular é destinada a Dworkin pela maior parte de seus criticos. Além de emular metafisicamente uma condição ideal de realização do ideal de justiça, ainda fecha os olhos para os outros debatedores.
De outro giro, ao afirmar-se que existem direitos morais e direitos legais, leva-se a crer que em algum ponto Direito e Moral se unem, e isso em retomada do velho postulado Kantiano.
Nesse sentido, mesmo que se entenda que a idealização (metafísica) se afasta da realidade, ainda que com propósitos de modificá-la, ainda assim reputa-se de pouca serventia teorificar a partir de uma ordem pessuposta, que de per se já apresenta falhas, mas que, e ai é que entre a maior contradição, considerando-se os Juizes e Aplicadores da Lei como sendo escritores de uma ordem sucessiva de capitulos (chain novel), em que não podem partir do zero, tendo que respeitar os capitulos anteriormente construidos.
Thiago,
esse defeito também é visível com relação aos franceses. Aliás, aqui na Europa se critica muito o direito francês por isso. Eles pregam a universalidade dos valores, mas não são cosmopolitas na sua teoria. Franceses só citam franceses e vice-versa…
Quanto ao Dworkin, as falhas que você apontou são verdadeiras. Tem um pensador português chamado António Hespanha que apontou o mesmo defeito quanto à idéia de que os juízes são como escritores de um romance. É muita forçação de barra tentar justificar a criatividade da atividade judicial desse modo.
Aqui no Brasil, o que eu sinto, é que a gente copia de mais a teoria dos outros sem saber muito bem o que eles estão querendo dizer. E cópias, como o próprio nome diz, são meras cópias, quase sempre deturpadas em relação ao original.
O caso de Robert Alexy é paradigmático quanto a isso. Copiou-se a idéia de ponderação (que nem mesmo é dele) e de relativização (limitação) dos direitos fundamentais, mas não se adotou nada do que ele defende na sua Teoria da Argumentação Jurídica (por sinal, a despeito da péssima tradução, a própria tese é em si meio óbvia).
George
Aliás, acabei de ter outra idéia para um post no futuro: “As Teorias Jusfilosóficas e o Óbvio Ululante”.
George
Hugo, desconfio que temos uma divergência não só terminológica. De todo modo, não denomino de metafísica a organização sistemática e coerente das implicações inevitáveis de nossas práticas comunicativas. Há nisso certamente uma idealização. Mas, talvez à moda antiga, e também por desconhecimento, entendo metafísica a posição a que se refere Thiago, logo acima. E não se trata de com isso de escantear a condição humana. Estamos a tratar apenas das possibilidades das teorias sociais. A racionalidade é apenas uma dimensão da nossa condição. E ainda bem. Mas, no âmbito das nossas práticas políticas e jurídicas, considero importante essa dimensão, sem o apelo a uma “ordem pressuposta”.
George, concordo que ao tratar de teorizar a partir de e com casos concretos, Dworkin é muito mais interessante. E no que diz respeito às dificuldades no estudo de Habermas, estamos realmente no mesmo barco.
Oi George….
Dedico minha vida a estudar filosofia do Direito. Por mais estranho que seja é sobre essas ficções que está baseado todo o nosso ordenamento jurídico e portanto, também nosso direito positivo. Filosofia do Direito não tem mais ficções do que o bom o claro Direito positivado.
Gisele,
também me considero um estudioso da filosofia do direito. Desde que comecei o meu mestrado, em 2003, leio tudo que posso sobre o assunto, na medida de minhas limitações temporais. Agora com o doutorado, com mais tempo, tenho lido umas duzentas páginas por dia sobre o assunto. Faço isso por gosto pelo assunto muito mais do que pelo dever de aprender.
E não discuto a utilidade das idealizações. Como disse, é importante a gente se mirar no que é perfeito e ter parâmetro para criticar o imperfeito. A filosofia serve para isso mesmo e por isso ela sempre vai ser útil.
O problema – e isso é que gostaria de enfatizar – é confundir o ideal com a realidade. Os filósofos não fazem isso diretamente, pois não costumam falar da realidade, mas seus seguidores fazem.
A idolatria da lei causada pelas idéias de Rousseau é um exemplo disso. Nem ele, certamente, concordaria com o uso que fizeram da idéia de vontade geral. Do mesmo modo, a idolatria do juiz causada pelas idéias de Dworkin gera um efeito danoso, pois tem muito juiz que se acha mesmo um “hércules”. Dworkin está “dando asas às cobras”, como diríamos no Ceará…
Vamos filosofar. Vamos criar mundos ideais. Vamos criticar a realidade com base nesses parâmetros. Mas não vamos idealizar o que é imperfeito.
Grande abraço e vamos participar mais das discussões…
George
A filosofia desde o início dos tempos é refém. De um lado a teologia, buscando alicerçar suas premissas em bases filosóficas. Do outro lado, a Ciência (sentido estrito, se é que existe um), buscando igualmente fundamentar e refutar assertivas testadas ou construídas.
No meio, ela mesma, a filosofia. Muitas vezes ela serve aos dois senhores, e muitas vezes a um só. O certo é que para servir ao direito, usa-se muito de suas “artimanhas”, seja para refutar uma norma singular ou até mesmo um ordenamento, seja para legitimá-lo, total ou parcialmente.
Creio que nem mesmo a filosofia do Direito está a salvo de ser criticada, papel que ela mesma desenvolveu…..refém, destare, de si mesma.
Caro George,
Pelo rápido “upgrade” postado acima, pude perceber que a “ansiedade pelo progresso” (respostas concretas) já está quase “sob controle” (rs). E ressalte-se que estamos ‘apenas começando”.
Forte abraço.
Jânio.
Caro George,
Pelo rápido “upgrade” postado acima, pude perceber que a “ansiedade pelo progresso” (respostas concretas) já está quase “sob controle” (rs). E ressalte-se que estamos ‘apenas começando’.
Forte abraço.
Jânio.
Pois é, Jânio.
O problema é que o “apenas começando” pode ser interpretado da seguinte forma: cada passo que dou, o ponto de chegada fica duas vezes mais longe. :-)
Por isso, temo que nunca perderei o sentimento de ansiedade por respostas corretas. O ideal (olha eu aqui idealizando) é me conformar que não há verdades absolutas e, ao invés de seguir um caminho penoso, cansativo e sem graça, o melhor é passear e curtir a paisagem dessa bela aventura.
Se o ponto de chegada não tem fim, pelo menos a viagem vai ser divertida e nunca acabará…
George
Ah, lembrei daquela história que você contou sobre o físico e o engenheiro. Vem bem a calhar com o post. Você bem que poderia contar a história por aqui.
George
Muito bom artigo. A filosofia do direito tem uma enorme importância pelo fato que seus modelos ideais da sociedade – que embora sejam irreais – são uma referência de como a nossa sociedade “imperfeita” deve, pelo menos, tentar ser.