Aproveitando a sexta-feira malemolente, falarei sobre mais um personagem do seriado Boston Legal. Já falei aqui do Denny Crane. Agora, é a hora de seu fiel escudeiro: Alan Shore (James Spader).
Alan Shore é, ao lado de Denny Crane, um dos personagens principais de Boston Legal. É um advogado brilhante, que defende com paixão as causas em que acredita de verdade, agindo, em muitos casos, contra os padrões éticos aceitáveis, mas sempre com as melhores intenções. Ele é uma espécie de idealista sem muito caráter; uma espécie de Dr. House da advocacia.
Politicamente, Alan Shore pode ser considerado como liberal, encaixando-se, na dicotomia partidária que vigora nos EUA, como “democrata”. Nesse ponto, ele é o oposto de Denny Crane.
Embora tenha um senso ético muito afinado em temas como racismo, pena de morte, meio-ambiente, privacidade, liberdade de expressão etc., não costuma seguir as regras tradicionais da ética profissional. Mas mesmo quando ele quebra os mandamentos éticos que todo advogado deveria seguir, no fundo ele está preocupado em fazer uma boa ação. Para ele, os meios moralmente inaceitáveis são, muitas vezes, mecanismos legítimos de se atingir um fim socialmente benéfico, como garantir a liberdade de um inocente ou livrar da cadeia uma pessoa oprimida pela sociedade. Os caminhos da justiça, na sua ótica, nem sempre devem seguir os padrões de honestidade estabelecidos oficialmente.
É difícil para o espectador leigo não concordar com os seus métodos, já que Alan Shore é o herói do seriado e não age pensando nas vantagens econômicas do caso que está defendendo. A forma como os fatos são narrados induz o espectador a admirar o seu senso ético e a acreditar que ele está fazendo a coisa certa, ainda que esteja subornando uma testemunha, ameaçando o adversário ou chantageando o juiz da causa.
Cumprir a lei não tem um valor intrínseco para Alan Shore. Se os benefícios obtidos com o descumprimento da lei superarem as desvantagens que a observância da lei trará, então vale a pena se pautar pelo seguinte ditado: no confronto entre a lei a justiça, escolha sempre a justiça.
Ele é famoso por gostar de fazer encenações no Tribunal, utilizando a corte como palco e os jurados como público. Faz milagres com o improvável, utilizando o efeito surpresa a seu favor. Suas sustentações orais costumam ser bem longas e muito convincentes.
Ele demonstra que um julgamento perante um júri envolve muito mais do que o conhecimento da lei. Envolve estratégia argumentativa, conquista da confiança dos jurados e até mesmo uma arte dramática barata para chamar a atenção e sensibilizar o público.
Em pelo menos duas ocasiões foi obrigado a defender clientes cujos comportamentos agrediam seus valores pessoais: um policial torturador e uma família que defendia a supremacia branca e o ódio racial.
No episódio em que Alan Shore teve que defender um policial torturador (s1e15), havia uma prova cabal contra o réu: uma fita de vídeo em que o policial aparecia sufocando e ameaçando a vítima. O escritório, no qual Alan Shore trabalhava, representava o Sindicato dos Policiais e, por isso, foi encarregado de defender o policial torturador.
Shirley, a chefe do escritório, obrigou Alan a tomar a frente da causa. Ele se negou em um primeiro momento: “não posso, disse Alan. Gosto de um pouco de humanidade em meus clientes. Aquele policial me enoja. Não contribuirei para colocá-lo em liberdade”.
Shirley, contudo, foi bastante persuasiva: “Não esperava que fizesse isso por ele. Espero que faça isso pelo salário polpudo que você recebe deste escritório. Por isso, defenda o cliente mesmo que tenha fazer coisas com as quais não concorda. E se isso o ofende, peça demissão”.
Alan não pediu demissão e defendeu o caso com muita competência.
Vamos ao caso: havia um seqüestro de uma criança de seis anos. Os policiais sabiam quem era o seqüestrador. Para descobrir onde era o cativeiro, torturaram o irmão dele, que não tinha nada a ver com o seqüestro. Durante a tortura, o interrogando quebrou o braço, fraturou o malar e teve que para no hospital. Logicamente, ele abriu o jogo e contou onde possivelmente o seqüestrador poderia ser encontrado. Os policiais acharam o suspeito, e a criança foi salva. E os fins justificaram os meios, à la Maquiavel.
A estratégia utilizada pela defesa para tentar livrar o policial se baseou na idéia de que o policial teria feito uma boa coisa. Eis a sustentação oral que Alan fez mesmo contra os seus princípios:
“A verdade é que, como americanos, adoramos tortura. Guardamos isso para nós, mas sejamos sinceros: quando se trata de criminosos, a tortura é bem-vinda. Holywood sabe disso. Dirty Harry. Charles Broson em Desejo de Matar. Denzel Washington em Chamas da Vingança. Heróis torturando caras maus. Nos cinemas pelo país inteiro nós gostamos de tortura. Há potencial para o abuso? Sem dúvida. Os eventos na prisão de Abu-Ghraib foram deploráveis. Mas acreditamos mesmo que aconteceram no vácuo? Alberto Gonzales, nosso procurador-geral, escreveu à administração dizendo que está tudo bem torturar. Nossa Suprema Corte disse que provas obtidas mediante tortura podem ser utilizadas no tribunal. Alan Dershowitz, um dos maiores ativistas dos direitos civis dos EUA, criou a idéia de mandados de tortura para pelo menos tratar disso mais abertamente. Mandados de tortura! Adoro tortura. O promotor disse que a vítima da tortura era um homem inocente. Ora, vamos, ele não era tão inocente assim. Escondeu informações sobre um fugitivo que seqüestra e mata crianças. Ele tinha a informação que levaria ao resgate da criança e se recusou a dá-la até ser coagido. Quanto ao meu cliente estar acima da lei… bem, a lei neste país sempre se sujeitou a padrões comunitários da humanidade em desenvolvimento. Assim, vocês, jurados, devem se perguntar: ‘o ato que este policial praticou foi bom ou não?’ (apontando para a criança que foi seqüestrada): ele está feliz e vivo. A família, sem dúvida, está feliz. O policial salvou a vida deste garotinho. Se fosse o seu filho, você não gostaria que a polícia fizesse o mesmo?
Este policial fez o seu trabalho usando um método que o nosso governo, o nosso exército, o nosso procurador-geral e, sim, até a Suprema Corte disse que, em algumas situações, é aceitável. Só não contem a ninguém”.
O policial foi inocentado.
Pela história acima, pode-se pensar que Alan tem no dinheiro a sua principal motivação. Mas não é bem assim.
Ele aceitou, por exemplo, defender um indigente em um processo movido contra Denny Crane, seu melhor amigo. Denny, pra variar, atirou no mendigo com uma pistola de tinta. Denny ficou indignado com a atitude de Alan ao aceitar defender o mendigo. Como ele poderia defender um adversário? Eis a justificativa de Alan: “Denny, olhei para aquele homem e vi um miserável sentado em uma sala cheia de gente como nós, os ricos. Temos 37 milhões de pessoas no país que vivem abaixo da linha de pobreza, o que equivale a 13% da população americana. Eles não têm educação nem plano de saúde. Eu tenho a obrigação de ajudá-lo. Você precisa me entender” (s2e9). Alan tirou do próprio bolso o valor da indenização que Denny teria que pagar.
Em outro caso (s2e20), ele ajudou uma velhinha que estava sendo explorada pelo seu curador. Não tendo conseguido suspender liminarmente os efeitos da curatela, e percebendo que o curador estava se desfazendo dos bens da velhinha, Alan resolveu partir para uma espécie de “justiça com as próprias mãos”. Contratou uns capangas para darem uma surra no curador e o ameaçou caso ele não desistisse de agir naquela função. Rapidamente, o curador assinou a liberação redigida por Alan e tudo voltou ao normal…
Esse estilo dele de achar que os fins justificam os meios é típico do pragmatismo norte-americano. Não importa o que é certo, mas o que funciona. E talvez seja isso que faz dele um personagem tão rico. Pode-se até não concordar com o seu modo de agir, mas é difícil não perceber uma coerência no seu modo de pensar.
Frases marcantes de Alan Shore:
“Sou um homem de princípios… ou não. Depende da situação”.
“Eu sei que sou bom”.
“Jerry, certa vez lhe aconselhei a fugir da prática da advocacia, porque era uma profissão feia, na qual os seus ocupantes fazem coisas feias. Eu sou muito talentoso na prática da advocacia”.
“Talvez fosse a hora de nós darmos um descanso para o Iraque e nos preocuparmos em espalhar um pouco de democracia em nosso quintal”.
“Fazer com o que o júri confie em você para que acredite no que você disser: este é o segredo do júri. Quando se aprende a fingir a sinceridade, ninguém mais segura você”.
“sou o maior dos mecenários. Me coloco na linha de fogo por U$ 500,00 a hora”
“Para o mal vencer, basta os bons dizerem: ‘são negócios’”
“Sabe o que mais sinto falta em nosso país? Não é a perda dos direitos e das liberdades civis, mas da nossa compaixão, da nossa alma, da nossa humildade. Estamos nos tornando um povo mau. Quero um povo mais gentil e bondoso”.
“as palavras são minhas amigas”.
“é preciso acreditar nos jurados. Tem que se lembrar que eles são pessoas conscientes e piedosas. E burras o suficientes para não conseguirem escapar desse encargo”.
“O que me incomoda é que, neste país, sempre temos que adotar lados: você está conosco ou é contra nós; você é republicano ou é democrata; é vermelho ou azul. Ninguém encara mais uma questão e luta pelo que acredita ser o certo. Mas é a nossa capacidade de pensar que nos torna humanos. Ultimamente, parecemos querer rifar o dom do raciocínio em troca da boa sensação de pertencer a um grupo”.
É a relação dele (Alan Shore) com sua mãe que me intriga muito, será que Sigmund Freud, quando tratou do complexo de Édipo poderia estar se referindo a Alan? Para mim o epísodio em que Alan enfrenta Jarry (com o muito criativo cigarro de madeira no canto da boa) é o mais ilário de todos. Os três (Alan, Danny e Jerry) são o coração da série.
Pois é, Thiago, não tive coragem de tentar traçar um perfil psicológico de Alan Shore pois isso seria muito complicado. Afora a história da mãe, tem a história do palhaço, dos medos noturnos, da relação dele com o Denny que é pra lá de estranha e por aí vai.
George
Sem dúvida, e a questão do medo noturno daria uma bela desculpa para contratar acompanhantes femininas (como ele já fez na série) para dormir e cuidar na mesma cama. Desde que eu li “A ira dos anjos” de Sidney Sheldon, não me intrigava tanto com uma história acerca do Judiciário Americano, como me intriguei com as histórias de Alan Shore desde a 8ª Temporada de “the practice” (que tradução horrível eles foram fazer aqui no Brasil) até a presente temporada de B.L.
A relação com o denny é simplesmente d+, aquilo sim são amigos, o final da série demonstra bem isso, é magico, adorei sua analise sobre esse personagem Dr george.
Boston Legal é uma serie drama-comédia, acho que faltou o senhor falar um pouco sobre esse lado do alan, q é show tb
excelente trabalho…
hehehe…A vontade q tenho e sair por ai dizendo: “Alan Shore”… porra esse cara eh muito versatil e habil..a parte q mais gosto eh ele ino contra a corte…proxenetas q defediam a pena de morte de qualqur pessoa…Alan shore esse eh o cara… boston legal..melhor serie juridica q ja vi..!
Ótima análise. O discurso sobre a “cruz e a espada” que Alan faz no 4° episódio da primeira temporada é excelente, anti-ético, mas excelente.