Lá no blog “Direito e Democracia”, o Hugo Segundo, a partir de uma engraçada charge do Maurício Ricardo (clique aqui), fez um comentário demonstrando que o prestígio dos EUA, em matéria de direitos fundamentais, vem decrescendo bastante em razão das inúmeras violações aos direitos humanos praticadas por agentes públicos daquele país, especialmente após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
A charge me inspirou a escrever uma série de posts em que tentarei apresentar alguns exemplos de decisões criticáveis que a Suprema Corte daquele país tomou ao longo de sua história.
Aqui no Brasil, a gente costuma endeusar a Suprema Corte dos EUA como se ela fosse a guardiã-mor da democracia e dos direitos fundamentais e a principal responsável pelo espírito de liberdade que vigora naquele país. No fundo, porém, é um Tribunal como qualquer outro, composto por seres humanos ideologicamente comprometidos e tão capazes de errar quanto qualquer pessoa que detém um grande poder em suas mãos. É muita ilusão achar que os juízes, uma vez nomeados para ocuparem uma cadeira no mais alto lugar do pódio judicial, se tornam super-heróis, com poderes mágicos capazes de ter uma visão além do alcance e imunes às tentações vividas pelos demais seres humanos. São pessoas comuns, que vão ao banheiro como todo mundo e estão sujeitos às mesmas fraquezas mundanas que marcam a nossa espécie. (Para aqueles que acreditam que os juízes da Suprema Corte dos EUA são semi-deuses, é só clicar aqui para receber um choque de realidade). :-)
Lêda Boechat, que pesquisou tanto a história do Supremo Tribunal Federal brasileiro quanto a da Suprema Corte norte-americana, sugere que Rui Barbosa é o culpado por essa visão romântica que nós temos sobre o direito constitucional norte-americano. Ela tem razão. Rui tinha mesmo uma visão idealizada do modelo político adotado pelo EUA, tanto que, ao ajudar a redigir a Constituição brasileira de 1891, optou por desenhar um arcabouço jurídico que praticamente reproduz tim-tim por tim-tim o sistema norte-americano. O judicial review, ou seja, o poder dado aos juízes para invalidarem as leis inconstitucionais, é apenas um exemplo. (Não que isso seja ruim. Acredito, pelo contrário, que Rui foi genial ao seguir o modelo norte-americano de controle de constitucionalidade das leis. No entanto, o que quero destacar é que Rui acreditava platonicamente nos méritos do sistema judicial ianque e, como se verá, não é bem assim, especialmente no que se refere ao resultado ético dos julgados).
Se olharmos bem, perceberemos que a Suprema Corte dos EUA sempre viveu longos períodos de conservadorismo, servindo nitidamente como instrumento de manutenção de estruturas sociais e econômicas excludentes, intercalados por momentos relativamente curtos de avanços elogiáveis. Na verdade, só vamos encontrar decisões realmente favoráveis aos direitos fundamentais a partir dos anos 50 do século passado, sob o comando do Chief Justice Earl Warren. Antes disso, a Suprema Corte era claramente conservadora e discriminatória, barrando inúmeros avanços sociais conquistados na via legislativa por grupos desfavorecidos e decidindo sempre em favor do “status quo”. Os juízes eram totalmente comprometidos em proteger os interesses da classe economicamente privilegiada, até porque também faziam parte da aristocracia.
As piores decisões em matéria de direitos fundamentais, que serão reproduzidas ao longo de vários posts a começar por este, demonstram esse lado sombrio e opressor da Suprema Corte. As referidas decisões, hoje, estão ultrapassadas, pois foram revogadas posteriormente pelo mesmo Tribunal ou então por emendas constitucionais. Mesmo assim, algumas delas vigoraram por longos períodos e foram responsáveis pela consolidação do sentimento de intolerância que ainda hoje marca a sociedade norte-americana. Quem não é branco, cristão, rico e heterossexual é “looser” e, por isso, não merece consideração, nem respeito pelo “establishment“. É mais ou menos assim que pensa grande parcela do público conservador daquele país, numa visão caricaturada por Denny Crane, o excêntrico advogado do seriado Boston Legal. É difícil estabelecer até que ponto as decisões abaixo são responsáveis por essa mentalidade ou se são apenas reflexo dela. Mas não há dúvida de que quando o principal órgão jurídico do país avaliza a institucionalização da intolerância, isso dá um inegável suporte de legitimidade para justificar o desrespeito aos mais básicos direitos dos indivíduos, seja por outros agentes estatais, seja por particulares.
Dentro desse contexto, quando o Bush Jr. vem a público abertamente defender a tortura contra pessoas suspeitas de serem terroristas ou então o trancafiamento de estrangeiros em prisões isoladas do mundo e submetidos a julgamentos de exceção, não é algo surpreendente. Muitas pessoas daquele país pensam da mesma forma, até mesmo membros do Poder Judiciário. Essas pessoas elegem presidentes e congressistas. E isso não é de hoje. O círculo de proteção da dignidade humana, nos EUA, sempre foi muito restrito. E os estrangeiros, em regra, estão fora dele.
Sendo assim, passarei a analisar os piores julgamentos da Suprema Corte, para que possamos compreender que nem sempre vale a pena seguir cegamente os ensinamentos de outros países pelo simples fato de serem mais “civilizados” ou mais “desenvolvidos”. Veremos que não necessariamente o que é bom para os EUA é bom para o resto do mundo.
Para começar, o pior julgamento de todos os tempos: o Caso Dred Scott, julgado em 1857.
Caso Dred Scott (1857): uma mancha negra na história da Suprema Corte
Retrato de Dred Scott, pintado por Louis Schultze
Lá pelos idos de 1850, a escravidão era o assunto da moda nos Estados Unidos. Os Estados do Norte, cuja economia era essencialmente baseada na indústria e no comércio, eram favoráveis à abolição da escravatura, até porque isso iria ampliar o mercado consumidor. Os Estados do Sul, essencialmente agrários, eram intransigentemente contra a abolição, já que dependiam da mão de obra barata dos escravos para que seus produtos pudessem competir no mercado internacional.
Em 1820, foi assinado o “Missouri Compromise”, que proibia a escravidão em novos territórios existentes acima de determinada latitude nos Estados Unidos.
Dentro desse contexto, um escravo de nome Dred Scott ingressou com uma ação na Justiça alegando que, por ter estado em território onde era proibida a escravidão, tinha adquirido o direito à liberdade. A idéia era simples: uma vez livre, sempre livre, mesmo que retornasse ao seu Estado de origem, em que a escravidão era aceita.
O caso foi levado à Suprema Corte norte-americana que não aceitou os argumentos de Dred Scott. Na decisão, proferida em 1857, ficou decidido que os negros, mesmo os livres ou libertos, não eram e não podiam tornar-se cidadãos dos Estados Unidos segundo a Constituição, fato que os impediria de serem partes em processos judiciais.
De acordo com os membros da Suprema Corte, a Constituição, originariamente, não teria pretendido conferir cidadania aos negros e que “toda pessoa e toda classe e descrição de pessoas que, ao tempo da adoção da Constituição, eram consideradas como cidadãs nos diversos estados tornaram-se também cidadãs do novo corpo político; mas não outras além destes”.
Os negros, no caso, não eram pessoas, mas mercadorias de consumo e, como tais, não poderiam invocar direitos próprios do cidadão norte-americano.
No mesmo julgado, foi invocada, pela primeira vez na história da Suprema Corte, a cláusula do devido processo legal, a fim de conferir-lhe caráter substantivo, para declarar a inconstitucionalidade do “Missouri Compromise”, uma vez que “um ato do Congresso que priva um cidadão dos Estados Unidos de sua liberdade ou propriedade meramente porque ele foi ou levou sua propriedade para um território específico dos Estados Unidos, e que não cometeu nenhuma ofensa contra as leis, dificilmente poderia ser dignificado como devido processo legal” (trecho do voto de Taney, o relator do caso).
Pode-se dizer, nesse ponto, que o Caso Dred Scott foi uma das primeiras katchangadas da história da Suprema Corte norte-americana, já que os juízes invalidaram uma lei regularmente aprovada pelo Congresso Nacional por ser ela, na ótica dos julgadores, “irrazoável” e, portanto, violar o “due process of law”, sem explicar racionalmente onde estaria a irrazoabilidade. Katchanga!
Ainda hoje, aqui no Brasil, se elogia a construção “substantiva” da cláusula do devido processo, desenvolvida pela Suprema Corte norte-americana, como se fosse o melhor instrumento para barrar as leis materialmente irrazoáveis. Talvez seja mesmo. Mas o que pouca gente sabe é que essa idéia não foi criada para anular uma lei substancialmente injusta. O propósito, pelo menos no Caso Dred Scott, foi o de invalidar uma lei que era totalmente pró-dignidade, já que proibia a escravidão em determinados territórios. O que há de irrazoável nisso, cara pálida? Só porque atingiu o bolso dos amiguinhos dos juízes que eram donos de escravos? Que liberdade é essa, tão enaltecida pelos fundadores, que tolera a escravidão e se opõe contra qualquer medida que venha a beneficiar os negros?
Ninguém me tira da cabeça que o julgamento foi essencialmente ideológico. Os juízes queriam favorecer os proprietários de escravos, por estarem ligados de alguma forma aos seus interesses, e encontraram uma bela desculpa para não aplicar a lei. E assim foi feito.
A decisão no Caso Dred Scott gerou grande descontentamento por parte dos abolicionistas do Norte do país. Há quem defenda, inclusive, que ela foi uma das principais causas da eclosão da Guerra Civil norte-americana.
Somente com o fim da Guerra Civil e a conseqüente aprovação da Décima Quarta Emenda à Constituição, que consagrou o princípio da “equal protection“, a decisão do Caso Dred Scott foi revogada e os negros passaram a ser considerados cidadãos, ainda que de segunda categoria, conforme se verá oportunamente.
Para saber mais sobre o Caso Dred Scott (em inglês):
http://library.wustl.edu/vlib/dredscott/index.html
http://www2.maxwell.syr.edu/plegal/scales/dred.html
Referências bibliográficas
Sérgio Fernando Moro – Jurisdição Constitucional como Democracia
Lêda Boechat Rodrigues – A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano
No próximo capítulo: Caso Plessy vs. Ferguson.
é frods…… mas ate hoje os negros não possui uma dignidade justa, lutamos bravamente, e um dia chegaremos lá.
Como vou esquecer do dia que levei um revista na rua, voltando do serviço, não falei nada, fiquei quetinho, mas mesmo assim a “autoridade”, falou que eu tenho cara de folgado, e eu como não sou de levar desaforo pra casa, disse que o que vale realmente na vida, é a minha perspectiva de vida.
PENSE ?? o que resultou, desacato é obvio……….rssssssss,,, ainda bem que eu conhecia o delegado da regiao……rsssssssssss
abraçosssssss
Onde encontro literatura em português sobre o caso Dred Scott?
Parabéns pelo Site!
George,
Brincadeira… Todo mundo querendo saber sua opinião sobre o caso Lindemberg e voce vem com um caso AMERICANO PRÉ-HISTÓRICO.
Além do que, você excluiu opiniôes não ofensivas de outros colegas aqui do BLOG no último post.
Enfim, nesse blog não escrevo nem mais uma palavra.
Espero que não exclua também o meu comentário sobre o seu livro…
grato.
Ah…
Tem mais: quando a minha mãe chegar, eu vou contar tudo pra ela!
Você vai ver só!!!
Separados, ma iguais…..ainda hoje! Que venha a análise de Plessy Vs Ferguson e a regra da “one drop rule” ou regra da gota!
Obs: Corrigir/aditar o nome “Fegurson” para “Ferguson”.
Thiago.
quais comentarios foram excluidos?dos que eu me lembre, estao todos lah…
No mais, concordo com a critica de Faber: a doutrina nacional eh submissa, covarde e mesquinha. Limita-se a transcrever casos estrangeiros jah julgados. Repetem o que jah foi julgado, dao uma salpicada no texto com uma critica e outra, desde que bem sutil … PRONTO! Estao os artigos, “livros” ( amontoados de paginas) prontos a serem CONSUMIDOS POR UM CONSUMIDOR AVIDO por “CONHECIMENTO” (PODER), LOUCO PARA AFIRMAR AOS SEUS COLEGUINHAS BURGUESES QUE JA LEU O LIVRO DO TAL AUTOR RENOMADO. Doutor nao sei por onde, pos-doutor acolah…
Esses dias vi uma frase de Cassio Scarpinela Bueno que representa A LAMA EM QUE AFUNDA A DOUTRINA NACIONAL: “quando o supremo afirma alguma coisa, devemos sentar e gritar: ai, ai!”
Vi isso num livro de biblioteca. Tivesse gasto dinheiro em troca de uma merda dessas… RASGARIA, FAZIA PICADINHOS, e colocava no YOUTUBE…
Alias, a TV JUSTICA vai lancar um programa em breve: “queime um livro”. Lah serao destruidos ao vivo livros que nao valeram a pena. Aqueles que representam ofensa ao meio ambiente, pois IMPLICARAM A DERRUBADA DE UMA ARVORE PRA NADA…. para que fosse repetido o que jah fora dito…
Serei o primeiro a participar da gincana… jogarei na fogueira o livro de ELPIDIO DONIZETTI, curso de direito processual civil: um copia e cola dos artigos do CPC com outras palavras. Enquanto isso… o SAUDOSO CALMON DE PASSOS MOFA NAS PRATELEIRAS.
PREVEJO O PIOR, no entanto.
NAO TARDARAH PARA QUE ENCONTREMOS EM LIVROS JURIDICOS OS TERMOS: SACA… VELHO… SACOU… PUTZ… ESSA PARADA EH SIMPLES…
“Pode cre bicho, as paradas dos direitos fundamentais eh uma lombra muito doida. Comecaram la com os direitos de liberdade… O Estado naquele tempo era malvado pra caralho… ofendia os manos tudo…'” no blog do MARCINHO. Tu tah querendo que eu te mostre ateh o link porra? poe la no google e ve se acha… morou?
Minha solidariedade ao Faber. Tambem acho que o caso Lindemberg merece um comentario…
abraco
Lindemberg quem? O Garra deveria ter colocado um PAF entre os olhos desse rapaz, que em um momento não tinha sentimento e nem vontade de viver, e agora já teme por sua vida. Contraditório? Medida de Segurança nele. A única maneira de se comprir 30 anos de segregação neste país. (graças ao voto do Min. Marco Aurélio em um HC julgado recentemente).
George,
Interessante o post, sobretudo, para desmistificar aqueles que ainda reproduzem o discurso de forma a-crítica. Algumas observações:
– Me parece anacrônico pensarmos o conceito de liberdade e dignidade da pessoa humana, igualdade, como standarts fixo no pensamento jurídico, por mais que queiramos que fossem.Assim, ainda que nos cause indignação o fato é que o parâmetro dos contratantes do pacto norte-americano do século XIX não é o mesmo do século XXI.
Além da desmitificação, que já vale por si, também podemos apontar nestes casos os próprios limites do direito contemporâneo. Isto é, em que pese as críticas que ainda são feitas tendo como modelo um uma racionalidade universal, o direito foi e continua sendo perpassado por questões políticas, como vc assinalou. Não apenas no EUA, mas em todos os Estados.
Recebi um texto seu sobre a Teoria da Kchangada e sem tirar o mérito do lado cômico não podemos deixar de lamentar a pobreza epistemológica das ciências jurídicas brasileiras para a análise e reflexão da nossa produção jurisprudencial. No ponto, a kchangada é algo para ser compreendido na sua estranheza, como elemento significativo da nossa visão do direito.
Neste aspecto, não há dúvidas que a pesquisa norte-americana, seja do direito ou da ciência política, está muito mais avançada.
Ab.
Samuel
É verdade, Samuel. Concordo com o que você disse, inclusive quando afirma, na parte final, que eles – em termos de metodologia de pesquisa – estão muito mais avançados. Aliás, os votos de Brandeis e Holmes, já no início do século passado, poderiam ser considerados “melhores” do que os votos dos juízes brasileiros nos dias de hoje, apesar de eles terem bem menos informações do que temos.
Eles – os norte-americanos – modificaram o modo de pensar o direito. E nisso são mais avançados do que até mesmo a Corte Constitucional alemã. São mais práticos. Vão direto ao ponto e apresentam dados capazes de convencer. A teoria é mais pobre, mas a justificativa é mais rica.
Depois, terei a obrigação de citar alguns casos elogiando algumas decisões da Suprema Corte, senão vai ficar parecendo que só olho pro lado ruim (que até eles consideram ruins)…
George
Olá, George.
Talvez você não lembre de mim. Meu nome é Alonso Freire. Nos conhecemos quando de sua vinda a São Luís anos atrás para uma palestra no UNICEUMA. Passando aqui para lhe indicar meu site: http://www.direitoconstitucionalamericano.org
Abraços.
I’m impressed! You’ve managed the almost imsospible.
Sugestão: trocar o adjetivo negra da expressão mancha negra da legenda da foto do post por outra que indique uma qualidade negativa, mas que não a relação entre algo negativo, ruim e a cor negra.
George, por que vc não publica um post sobre o caso do julgamento dos imigrantes Sacco&Vanzetti entre as piores decisões da SCA? Eles não apelaram para a Suprema Corte?
Grato
Ivan
a propósito, meu nome é Ivan; não consegui postar o meu e-mail ontem…
agora foi
Professor, gostaria de ler um artigo do senhor sobre as decisões do STJ acerca das operações “Castelo de Areia”, “Satiagraha” e “Boi Gordo”, que anularam as provas de grandes operações da Polícia Federal, operações essas responsáveis por colocar no banco dos réus diversos empresários (leia-se financiadores de campanhas políticas).
O tema é pertinente ao blog porque trata de pontos delicados da democracia e do judiciário (e suas relações perigosas com o mercado). Assim, ficam as perguntas:
1. quão independente é o Poder Judiciário das influências econômicas e de interesses privados?
2. quais os limites do Estado Constitucional? Está o Poder Judiciário preparado para condenar “os donos do Brasil”?
3. seria possível o controle jurídico dessas decisões (ou aqui encontramos um limite às instituições jurídicas), na medida em que não há para quem recorrer?
quanto ao comentario do HUGO MERCES, quero aqui enfatizar que o mais interessante do caso do DANIEL DANTAS, FOI que, o protogenes queiroz (DELEGADO), e, o juiz de sanctis, hoje desembargador federal, um perdeu o cargo, e, o outro quase perde, nao fosse o TRF e a atuação rapida do magistrado. INCRIVEL NO BRASIL.