Que o Estado Democrático de Direito em que vivemos é informado pelo valor fundamental da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), todos – especialmente os leitores do blog – de há muito sabemos.
Que nosso legislador constituinte dedicou atenção toda especial aos direitos fundamentais, é igualmente fácil constatar: basta a simples leitura do extenso rol de comandos inseridos no art. 5º (nada menos que setenta e oito!) e nos demais artigos do Título II da Lei Maior.
O que não se explica facilmente é o porquê do lamentável oblívio ao qual foi relegado, desde sempre, o inciso XLI do art. 5º, cujo incisivo texto determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais”.
Chega a estarrecer que doutrinadores de certo renome (decerto, não no Direito Constitucional!) ainda defendam que o dispositivo em tela carece de eficácia jurídica, em razão da inexistência de norma específica para regulamentá-lo.[1] Nesse sentido opinou Sérgio Pinto Martins, para chegar à “brilhante” conclusão de que “não há impossibilidade da dispensa do doente de AIDS com fundamento na citada norma constitucional, que não é auto-aplicável”.[2]
Tenho como grave equívoco, dentro de um contexto hermenêutico-constitucional de máxima concretização dos direitos fundamentais, considerar-se que o inciso XLI é destinado apenas ao legislador. Seu significado é muito mais abrangente, pois reclama também de Executivo e Judiciário o respeito às liberdades civis. Mais do que isso, pode-se dele extrair o fundamento positivo dos deveres de proteção impostos ao Estado em prol dos direitos fundamentais – o que não é pouco!
Na jurisprudência do STF, todavia, poucos são os decisórios que se reportam de modo expresso a esse dever estatal de proteção – e nenhum, certamente, com amparo no inciso XLI. A doutrina, de hábito, lembra a Intervenção Federal nº 114/MT,[3] em que a corte vislumbrou omissão ilícita do Estado-Membro em evitar o linchamento de três suspeitos de crime na cidade de Matupá; em “A Constituição e o Supremo”, seleção de arestos disponível no site da corte, ao dispositivo em foco corresponde trecho da ementa do célebre caso “Ellwanger” (que, entretanto, é muito mais lembrado à luz do XLII, que repudia o racismo).
A partir do inciso XLI, a mensagem que a Constituição exprime é, na essência, que “o Estado protegerá os direitos fundamentais de qualquer violação, seja de natureza civil ou penal, quer provenha do próprio Poder Público ou de particulares”. Fosse assim redigido, o preceito certamente ocuparia lugar de honra na dogmática jusfundamental – eliminando, inclusive, a já superada discussão sobre o efeito horizontal. Ora, seria a redação atual assim tão substancialmente diferente, a ponto de subtrair-lhe todo o protagonismo devido no âmbito do art. 5º? Entendo que não.
Nesse aniversário de 20 anos de nossa Lei Maior, faço votos para que os aplicadores do direito descubram esse “gigante adormecido” no seio do texto magno, essa ferramenta tão pouco utilizada na defesa dos direitos fundamentais, e possam dignificá-lo com a grandeza jurídica a que faz jus.
[1] No campo penal, a Lei 7.716/89 definiu os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor. No cível, pelo menos uma lei pode ser apontada como consectária direta do presente inciso: a Lei 9.029/95, que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho.
[2] In: Dispensa do Doente de Aids e Reintegração. Publicada no Juris Síntese nº 69, jan./fev de 2008. Porto Alegre: Síntese, CD-ROM.
[3] VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A Evolução da Interpretação dos Direitos Fundamentais no STF. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 375-380.
George,
belo post.
porém, e ai reside a beleza da argumentação, outro princípio Constitucional Jusfundamental , diz que: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;” (art. 5º, inciso XXXIX). O brocardo também é conhecido como: “Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege”.
Se houvesse no texto Constitucional mencionado na postagem (5º, XLI):
“a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais” , além da previsão legal, a punição, leia-se: o preceito incriminador segundário, admitindo-se que o tipo legal seria a própria norma:
Crime:
disciminação (qualquer ), atentatória dos Direitos e liberdades fundamentais”.
Pena: 5 a 15 anos de reclusão (inicialmente no regime fechado)
ai sim concordaria em “gênero, nº e º”.
Amigo Thiago,
envaidece-me que tenha imaginado que o post foi do George…
Sua observação é impecável, do ponto de vista penal. O que pretendi enfatizar, todavia, é precisamente que o inciso XLI transcende a órbita criminal e, como fundamento constitucional dos deveres estatais de proteção, se propaga objetivamente por todos os ramos do direito. Nesta linha de pensamento, dada a multiplicidade de situações passíveis de atrair sua incidência (basta lembrarmos da eficácia horizontal), simplesmente não consigo entender a ausência desse dispositivo na jurisprudência sobre direitos fundamentais.
Aquele abraço,
Adriano
Bela lembrança, Driconildes. Eu próprio não havia percebido a tamanha força jurídica que é possível extrair do referido inciso. Imediatamente, a gente tende a vinculá-lo ao direito penal, como fez o Thiago, e isso esvazia o seu significado, pois fica a depender do legislador para criminalizar as condutas contrárias aos direitos fundamentais.
Quanto ao comentário do Sérgio Pinto Martins, é um posicionamento que está bastante defesado em relação não apenas ao direito constitucional, mas também à chamada “constitucionalização do direito”, que afeta todos os ramos do direito, inclusive o direito de trabalho.
Felizmente, o TST seguiu uma direção menos conservadora e entendeu que as empresas não têm o direito de demitir os funcionários portadores do HIV.
George Marmelstein
Ótimo post, Drica!
Na minha opinião, a abandono de tal dispositivo pela doutrina e jurisprudência está no fato de que, na verdade, a norma em questão está implícita em qualquer ordenamento jurídico que consagre direitos fundamentais. Em outras palavras, num Estado Democrático de Direito, pressupõe-se que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais”.
Entretanto, ainda que fosse desnecessária, a regra do inciso XLI do art. 5º da CF mereceria posição de destaque nos estudos sobre o direito constitucional brasileiro.
Abraços,
Leonardo
Adriano Costa,
desculpe, o post é bastante interessante, como eu havia dito.
a discussão está em aberto, e eu concordo que as violações aos direitos e liberdades fundamentais devem ser severamente punidas (multiplas e diversas situasções) :
O tipo inciminador, salvo engano, parece bem claro.
Porém, como seria aplicada a pena (sistema Hungria ou Lyra?), e como seria alcançado o quantum final (independentemente se for bi ou trifásico)?
E me colocando a pensar na mencionada força do dispositivo, será que não seria o caso de uma “injunção criminal” entendendo-se por implícita a força do inciso XLI no bojo do inciso LXXI, interpretando-o em sua dualidade:
“LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais (aqui estaria a porta do inciso XLI ?)
e
das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;”
Bom, a tentativa foi fraca, reconheço, mas ainda paira uma fulígem no writ injuncional.
abraços.
Com George e Leonardo ratificando o post, fico bastante tranquilo (já sem o trema, notaram? Modelo 2009) de não ter falado bobagem.
Efetivamente, os julgamentos não-penais que pude encontrar em que era citado o inciso XLI giravam quase sempre em torno de despedidas discriminatórias de doentes de AIDS (TRT 7ª R. – RO 00623/2006-012-07-8 – Red. Juiz José Antonio Parente da Silva – DJCE 03.12.2007).
Convenhamos: é muito pouco!
Abraços
Drica,
no mesmo sentido, também há decisão do TST:
“tratando-se de dispensa motivada pelo fato de ser o empregado portador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – SIDA e sendo incontestável a atitude discriminatória perpetrada pela empresa, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, a despedida deve ser considerada nula, sendo devida a reintegração” (TST, E-RR-217.791/1995, DJ 02.06.2000).
Ah, e também lembrei, em sentido semelhante, da decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que condenou o Brasil em um caso de discriminação racial, por não haver tomado qualquer medida punitiva contra uma empregadora que, em anúncio de jornal, incluiu, como requisito para o cargo que pretendia preencher, a preferência de “cor branca” para as candidatas.
É o dever de punir sendo reconhecido pelos tribunais internacionais de direitos humanos!
Boa tarde, não sou estudante de dereito porém me interesso pela área, alguem poderia citar algum exemplo em que essa lei se aplica, por exemplo: “um garoto robou a bolo do outro” :) algo assim,,, obrigado…
O QUE SIGNIFICA APALAVRA INCISO
Bom..George concordo totalmente com suas palavras ,este inciso é tão amplo e imenso pois aborda todas as violações com…liberdade de ir e vir,bem como liberdade de expressão,direito a vida, a saúde e educação que dever ser disponibilizado pelo estado, direito ao trabalho digno e remunerado ( então entra a questão do trabalho escravo),direito a ser tratado com dignidade sem exploraçao fisica ou mental, a punição a discriminaçao de qualquer forma..tanto racial,social ,opçao sexual,sexual etc..enfim e tão amplo que fica impossível citar todas. Porém, ao realizar um trabalho sobre este inciso para apresentar na faculdade tive uma dificuldade imensa pois no STJ são poucas as jurisprudência embasada neste inciso a maioria das decisão são embasadas no CP e CC ou até em outros incisos CF mas que abrange o XLI tambem…porém ele é esquecido e não citado..espero que os legisladores venham utiliza-lo visto que ele e fundamental para aplicar o fundamental no direito que é a justiça.