Com o Relator: o “efeito manada” nos julgamentos colegiados

Bom Senso Prático

Trilussa

Quando de noite voz que se espalhou

dizia haver um Fantasma no castelo,

a multidão correu logo pra vê-lo

e diante dele toda se prostrou.

Um velho ficou de pé, pois nada via

e declará-lo logo ele queria.

Mas pensou: “Loucura bem seria.

Tenho um lençol, sem dúvida, na frente:

Mas afirmá-lo só não é prudente,

prefiro errar em boa companhia.

É Fantasma, não quero discussão”.

E se prostrou também na multidão.

(trad. Maria Galeffi)

Assistir ou participar de um julgamento colegiado é uma experiência ímpar, que impressiona negativamente.

Com muita freqüência, os julgadores estão desatentos. É comum vê-los em conversas paralelas, falando ao celular, jogando paciência no computador ou até mesmo dormindo descaradamente. Não é à toa que 99% dos julgamentos colegiados terminam com a cômoda frase “com o relator”.

É sobre isso que quero falar.

Inicialmente, é preciso reconhecer que esse fenômeno – acompanhar o relator sem maiores questionamentos – não deve ser considerado como algo do outro mundo. É até natural que sejamos influenciados, em nossas escolhas, por decisões já tomadas por outras pessoas. Instintivamente, costumamos seguir os passos dos que nos precederam, pois, se eles estão vivos, é porque suas estratégias comportamentais foram bem sucedidas.

Além disso, se não fosse assim, os julgamentos seriam muito mais longos e, com toda certeza, muito mais chatos. Portanto, diante da quantidade de processos que a Corte tem que apreciar, é melhor seguir o relator para evitar maiores complicações e contratempos.

É óbvio que essa técnica de julgamento, embora privilegie a celeridade, acarreta uma perda da qualidade da decisão. No fundo, não se trata de um julgamento colegiado. O que se tem, de fato, é uma decisão monocrática, proferida pelo relator, que os demais membros seguem como carneirinhos, muitas vezes esperando a mesma gentil retribuição quando estão no papel de relatores. É o “efeito manada”.

Como participo de julgamentos colegiados na Turma Recursal do Ceará, também não fujo a essa regra. Prefiro, por uma questão de praticidade, confiar do “feeling” do relator, que – presume-se – analisou cuidadosamente os autos e, por isso, está muito mais habilitado do que eu para tomar a decisão mais correta sobre aquele específico caso. Só abro divergência raramente, em geral nas discussões jurídicas em que já tenho opinião formada.

O “efeito manada” poderia ser evitado se o procedimento dos julgamentos colegiados fosse alterado. Hoje, funciona mais ou menos assim: o processo é distribuído aleatoriamente para um dos julgadores, que será o relator. Além de elaborar um relatório, sintetizando os principais pontos a serem debatidos, o relator redige seu voto no gabinete e o apresenta na sessão de julgamento.

Imagine uma sessão com centenas ou até milhares de processos. É óbvio que os demais julgadores não terão alternativa senão seguir o relator na maioria das vezes.

E como poderia ser o julgamento para melhorar a qualidade do resultado decisório sem prejuízo para a celeridade e a operacionalidade da Justiça?

Vou propor um modelo ainda bem “verde”, sujeito a aperfeiçoamentos. Seria mais ou menos assim: ao invés de se designar um relator previamente, cada juiz receberia uma cópia do processo e, de forma autônoma e independente, sem conhecer de antemão posicionamento dos demais colegas, “opinaria” sobre o caso, apontando se a decisão recorrida deveria ou não ser confirmada. Não seria preciso, nesse momento, que cada juiz redigisse um voto escrito e fundamentado sobre o caso. Bastaria que o julgador indicasse se na sua análise preliminar manteria ou não a decisão “a quo”. Na sessão de julgamento, se não houvesse divergência quanto ao resultado, ou seja, se todos estiverem de acordo quanto à confirmação ou não da decisão recorrida, escolher-se-ia um dos juízes para redigir a decisão. Se não houvesse unanimidade, ou seja, se pelo menos um dos juízes apresentasse uma “opinião” contrária, o caso seria debatido e, após os debates, os votos seriam novamente contabilizados, escolhendo-se, no final, um dos juízes do grupo vencedor para redigir a decisão, facultando-se aos demais juízes, inclusive aos vencidos, a apresentação de suas razões por escrito.

O ponto mais importante dessa nova técnica que proponho é o seguinte: é fundamental que pelo menos dois julgadores analisem o mesmo caso e cheguem a seus veredictos em separado, sem conhecer o posicionamento do outro.

Esse método – que com certeza não é tão original assim – pode ser capaz de dar um pouco mais de trabalho, mas certamente permitiria que a solução fosse muito melhor debatida, aumentando-se a carga de consistência da decisão e, com isso, a sua legitimidade.

É como voto.

Alguém acompanha o relator?

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19 comentários em “Com o Relator: o “efeito manada” nos julgamentos colegiados”

  1. bem bolado, George…

    Ao ler o título, pensei que fosse comentar o caso GILMAR MENDES. Sim, até o presidente do STF já deu uma cochilada. A dormida foi naquela cadeira macia do STF O caso foi mais ou menos assim.
    MIN ELLEN GRACIE: Sr. Gilmar Mendes?
    Min Gilmar Mendes: ham? acompanho o relator…
    Min Ellen GRacie: Sr. Gilmar Mendes!
    Min Gilmar Mendes: acompanho o nobre relator…
    Min ELLEN GRACIE: Eh que o sr. é o relator
    Min Gilmar Mendes: ops… ops…

  2. Caro George, com a devida vênia, penso que não seria razoável tirar tantas cópias de processos, gastando tanto papel. É só imaginar a pilha de processos que há hoje em dia e multiplicá-la por 2, ou 4, ou mais. Creio que seria um impacto econômico e ambiental muito considerável.
    Talvez fosse melhor o próprio original ficar passando de gabienete em gabiente.
    Mas ainda fico inclinado a achar que a mudança, de uma forma ou de outra, traria um aumento de qualidade que não valeria a pena, considerada a demora ainda maior no trâmite dos processos.

  3. Tem razão, Márcio. Mas é que o modelo que tenho em mente é a da Turma Recursal no Ceará onde os processos são virtualizados (a maioria). Então, a “cópia”, na verdade, poderia ser o acesso ao sistema virtual ou então os autos digitalizados.

    George

  4. A idéia é muito interessante. Espero que outros também pensem assim.
    Considerando a iminente implantação dos processos digitais, não haverá necessidade de cópias nem de pedidos de vistas. Todos os membros do colegiado poderão ter acesso aos autos em tempo real, até mesmo durante o desenrolar da sessão. Os julgadores até poderão continuar conversando, telefonando ou cochilando, mas não será por falta do que fazer.

  5. Professor George,

    Em primeiro lugar, devo dizer que é estarrecedor para o jurisdicionado saber que a sua causa, para si importantíssima, está sendo decidida por “Maria vai com as outras”. Mas, infelizmente, é assim mesmo que acontece na vida real, especialmente para “limpar a pauta”. E o que é pior: em alguns casos [julgamento em bloco, por exemplo], o Colegiado aplica em sua decisão “teses pacificadas”, sem observar especificidades do caso concreto e alegações bem fundamentadas de um outro advogado, que levaria a um resultado diametralmente oposto.
    A sua sugestão parece contribuir para a melhoria da qualidade das decisões, pois exigiria um estudo prévio do caso por todos os membros do Colegiado, mas certamente ocasionaria um atraso ainda maior na entrega da prestação jurisdicional, já que quando não houvesse unanimidade de opinião, os pedidos de vista aumentariam muito. Mas como você bem disse, é ainda uma idéia “verde”.
    Que tal proibir-se o pedido de vista fora de mesa? Acho que assim poderíamos aliar qualidade a um mínimo de efetividade.
    Abraços.

    Edmilson

  6. Algumas considerações pontuais, não no sentido de reprovar, mas de sanar ou explicar eventuais dúvidas minhas:

    1. quem decide medidas urgentes, em geral analisadas liminarmentes pelo relator monocraticamente?;

    2. como se estabelece a data do julgamento, uma vez que em geral o pedido de inclusão de pauta é realizado pelo relator?;

    3. se é verdade que a existência de um relator fixo não garante que ao menos esse estude o caso atentamente, não menos verdade que esse modelo proposto se não é menos eficiente do que o de um relator monocrático também não é mais eficiente; dessa forma como garantir uma atuação dedicada de todos os magistrados?

  7. George,

    Eu já imagino uma solução diferente: o fim das sessões.

    Com a digitalização dos processos, pensei em estabelecer julgamentos colegiados on line, mais ou menos como num fórum de discussão, ou mesmo num blog.

    O relator lança seu voto como sendo o post principal. A partir daí, concede-se, por exemplo, 24 horas para o advogado apresentar suas razões. Mais 24 hrs para o relator rever ou manter o voto e 48 horas pra revisor e vogais (prazo comum) lançarem os seus, sob pena de ser considerada sua ausência injustificada à sessão. Os votos dos demais ficam como comentários ou posts subsequentes.

    Por ser o processo digitalizado, dispensa-se o relatório e o voto deve ser sucinto.

    No geral, as Câmaras têm sessões semanais. Com esse modelo virtual, a sessão igualmente será semanal, iniciando-se, por exemplo, na segunda, e proclamando-se o resultado na sexta-feira.

    Com isso, findariam aquelas sessões enfadonhas, os julgamentos seriam mais dinâmicos e gastar-se-ia menos com suntuosas e espaçosas instalações dos Tribunais. Ah, e eliminaríamos o papel.

    Além disso, teríamos um julgamento com possibilidade de diálogo entre todos.

    No entanto, admito que esse modelo não soluciona bem a questão da desatenção dos vogais.

    Já pensou, um dia, termos blogs julgadores? Quem sabe…

  8. Concordo em gênero, número e grau. Deveria ser obrigatório o voto embasado, fundamentado. Temos que lutar para que isso mude. Senão teremos muitos dos direitos fundamentais afrontados.

  9. George,

    Não é à toa que a decisão do colegiado se chama acórdão, afinal eles acordam ao final do voto do relator. Essa vc já deve ter ouvido, mas vale repetir, dê ao menos uma risadinha amarela.

    Mas, brincadeiras à parte, acho que vc já comentou em outros posts sobre o assunto, num deles, salvo engano, vc sugeriu que o voto do relator fosse repassado pela intranet para os demais no intuito de aumentar a celeridade, na hora me veio a indação sobre como ficaria a sustentação oral, indagação essa que tempos depois confirmei como procedente quando vc mesmo em post posterior disse que 10% dos julgamentos da turma recursal da qual participa são alterados após a sustentação oral dos causídicos, daí porque também não concordo que as decisões colegiadas sejam só no papel, o fator contato-humano é imprescindível, papel e computadores são ótimos para estatísticas, mas os fatos são reais e os dramas das pessoas envolvidas nas lides também.

    É como voto.

    Marcelo.

  10. George,

    e com a devida vênia ao marcelo bertasso, cujo blog gosto muito e como o seu também acesso diariamente, sustentação oral em papel como ele sugere em seu comentário, não é sustentação oral, será apenas mais um arrazoado, que nem de longe substitui a presença física do advogado.

    Marcelo

  11. Aliás,

    um outro aspecto tão nefasto quanto a desatenção no julgamento são as decisões tomadas pelos assessores, não à toa, muitas vezes, os advogados se preocupam muito mais com estes do que com os desembargadores, se não houver um supervisão séria este risco ocorre e o julgamento virtual facilita bastante essa prática condenável.

  12. George,

    São feitas sustentações orais, muitas vezes, apenas para chamar a atenção dos julgadores do órgão colegiado, vez que, em regra, os advogados temem que as suas razões não serão de fato apreciadas. O sucesso da sustentação pode consistir apenas no pedido de vista por um dos juladores se o relator tiver voto desfavorável ao pretendido pelo advogado.
    O método proposto certamente trará mais confiança aos advogados de que todos os membros do órgão colegiado apreciarão as suas razões, e como consequência, poderá haver significativa redução no número de inscrições para as sustenções, de sorte que poderá ocorrer a celeridade nas sessões de julgamento.
    Outro aspecto que seria relevante, em havendo alguma iniciativa legislativa, seria um dispositivo que levasse os advogados a iniciar as peças recursais com uma espécie de ementa, lançando resumidamente o histórico da demanda, da decisão a ser reformada ou mantida e sinteticamente as suas razões ou contra razões de recurso.

    Parabéns pela iniciativa de abrir o debate.

    É como voto.

    Mário.

  13. Tenho pra mim que o nosso modelo é bom, porém, deturpado. Primeiro pelos nobres magistrados que há muito perderam a noção de sua função e seu status de servidor público, afinal, inaceitável que um membro da advocacia pública ou um servidor administrativo realize seu trabalho sem a menor preocupação com a qualidade. Basta imaginar o advogado que ao elaborar as razões de recurso fique, ao mesmo tempo, falando ao celular ou jogando paciencia, o resultado não será dos melhores.
    Também a preocupação no empreguismo por parte dos desembargadores – não diminuida com a proibição do nepotismo – que ao escolherem seus assessores optam por aqueles que lhe tragam maiores beneficios sociais (status), ao invés de se cercarem de pessoas competentes.
    Por último, a barreira criada por magistrados para receberem os advogados e mesmo os desleixo dos advogados em buscar levar a matéria em julgamento aos magistrados.
    A mim parece que a mudança de hábitos surtirá mais efeito que a mudança do sistema. Mas a nossa sociedade já está acostumada a resolver problemas com a mudança da lei e não com o respeito dela.

  14. Já tendo recebido um “acho que tá bom” seguido de dois “uhum” como “acórdão” da turma recursal, acredito que qualquer proposta no sentido de reavaliar o sistema é válido.

    Por conseguinte, acompanho o relator.

    1. Si, esa parte de que si yo comparto en un cedrculo, luego ceiuqlaura pueda compartirlo fuera del cedrculo creo que es un error. Especialmente para las fotos. Puede traer desagradables consecuencias. Veremos cf3mo lo gestionan.

  15. Aqui no TJ-AM alguns desembargadores não se dão nem ao trabalho de dizer “com o relator”; eles só fazem gestos, com a cabeça ou fazendo sinal indicativo para o relator.

Os comentários estão encerrados.

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