Existe incompatibilidade entre o garantismo e a efetividade do processo penal?

Como os últimos posts sobre “impunidade e direitos fundamentais” geraram muita polêmica. E como houve bons argumentos criticando meu ponto de vista, vou tentar esclarecer melhor o meu pensamento.

De início, é preciso que se diga que quem vive em um Estado Democrático de Direito não tem outra opção a não ser aceitar, aplaudir e estimular o garantismo penal. Eu sou, com toda certeza, garantista, se por garantismo se entender o respeito aos direitos fundamentais e às garantias processuais. Ler Beccaria ou Ferrajoli e não concordar com os seus argumentos é muito difícil. E mais: é praticamente impossível ler os textos que defendem o “direito penal do inimigo” e não ficar assustado com aquela nefasta doutrina. O discurso do terror, que pretende ressuscitar o velho Leviatã, provoca calafrios.

Em razão disso, concordo com praticamente tudo o que o Hugo Segundo falou. As divergências são pontuais, facilmente explicadas pela diversidade de experiências em que vivemos. Ele – como advogado, filho de um dos maiores críticos do abuso do poder estatal e conhecedor de diversos casos em que o Estado violou direitos fundamentais com “boas intenções”. Eu – como juiz, ainda “ingênuo” em relação ao papel do Estado (as palavras são do Professor Hugo, pai – clique aqui) e conhecedor de diversos casos em que a retórica dos direitos fundamentais foi utilizada para encobrir a prática de atos abomináveis.

Creio que nenhum de nós dois aceita passivamente a impunidade, nem a corrupção, nem mesmo o abuso do poder estatal. O desrespeito à ordem constitucional não pode ser tolerado e merece ser punido conforme as regras do jogo.

Creio que também não há discordância quanto ao fato de que o Estado tem a obrigação de tratar todos os cidadãos – independentemente de qualificativos econômicos, sociais ou culturais – com igual respeito e consideração. Não defendo, nem jamais defenderei, uma “cota para ricos nos presídios”. Reconheço que há uma discriminação indireta (de fato) contra negros e pobres por parte do Estado, inclusive por parte dos juízes criminais. Mas essa discriminação não é resolvida violando a dignidade dos ricos e sim dando mais dignidade aos pobres. Não se deve equiparar por baixo. E justamente por isso, no meu entender, a indignação contra as injustiças cotidianamente praticadas contra os pobres deveria ser muito mais intensa do que ocorre atualmente. Há muito grito quando uma (suposta) injustiça é cometida contra criminosos de colarinho branco e um eloqüente silêncio quando um inocente pobre é assassinado, torturado, jogado num presídio imundo e lotado ou então estuprado dentro do cárcere, sob os olhares indiferentes das autoridades máximas e mínimas do país.

Acredito que até aqui nossos pensamentos coincidem quase integralmente. O único ponto de divergência talvez seja o seguinte: não acho que exista uma colisão entre a busca da efetividade do processo penal e o respeito às garantias processuais. É possível que a perseguição penal seja ética e ao mesmo tempo efetiva. Não se pode abrir mão do garantismo, assim como não se pode aceitar a impunidade.

O problema é quando o garantismo é utilizado – abusivamente – para impedir a efetividade do processo penal ou então para proteger grupos criminosos “privilegiados”. Não sejamos ingênuos de pensar que isso não ocorre. Aqui no Brasil, quando o advogado é bom, qualquer pessoa consegue o direito de aguardar o prazo prescricional em liberdade. E isso não é culpa da preguiça dos juízes e sim de interpretações distorcidas que dão às garantias penais uma abrangência que não existe em lugar nenhum do mundo.

Acho que o juiz deve ser imparcial e ter sempre em mira o princípio da presunção de inocência. Porém, jamais deve ser neutro, muito menos indiferente, diante de uma violação a direitos fundamentais. O juiz deve sim se preocupar com a efetividade do processo penal, senão a sua função perde o sentido.

E para que minhas palavras não fiquem só no blá-blá-blá, vou dar dois exemplos que ilustram meu ponto de vista.

O primeiro é surreal.Confira-se o informativo do STF, em especial a parte que grifei:

“Prisão Especial de Advogado e Sala de Estado-Maior – 1

Constitui direito público subjetivo do advogado, decorrente de prerrogativa profissional, o seu recolhimento em sala de Estado-maior, com instalações e comodidades condignas, até o trânsito em julgado de decisão penal condenatória e, na sua falta, na comarca, em prisão domiciliar. Com base nesse entendimento, a Turma deferiu habeas corpus para assegurar ao paciente, advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil e que se encontrava recolhido em penitenciária, a sua custódia domiciliar ante a inexistência de sala de Estado-maior na unidade federativa. Decidiu-se, ainda, tendo em conta a ficha criminal do paciente, da qual constam diversas acusações, dentre as quais, cerca de 20 seqüestros, formação de quadrilha e motins, oficiar-se à OAB para que tome as providências que julgar cabíveis. Vencido, neste ponto, o Min. Marco Aurélio que, reputando incabível interpretação teleológica para flexibilizar a prerrogativa prevista no Estatuto da Advocacia quanto à prisão em sala de Estado-maior, considerada a vida pregressa do profissional da advocacia, asseverava que tal comunicação surgiria, no writ, como verdadeira pena acessória. HC 91150/SP, rel. Min. Menezes Direito, j. 25/9/2007” (Informativo 481 do STF).

Qualquer cidadão com o mínimo de bom senso perceberia um alto grau de injustiça na decisão acima. Afinal, um criminoso dessa qualidade ter o direito de responder pelo crime em sua casa, no bem bom, aproveitando-se das benesses conquistadas com o dinheiro do crime – isso não cheira bem. Aliás, isso foi percebido até mesmo pelo relator do processo, o Ministro Menezes Direito que assinalou o seguinte: “Estamos cuidando de advogado, que se diz advogado, mas que tem uma ficha criminal com vinte seqüestros, com uma dezena de outros crimes. Não se trata, realmente, de um advogado. Pode ter inscrição e pagar a sua anuidade na Ordem, mas advogado ele não é. Advogado não pode ter essa ficha criminal (…). Ele não tem uma atividade advocatícia, a atividade que está descrita é de banditismo, de crime”. Inteiro teor do acórdão.

Mesmo assim a ordem foi concedida, garantindo-se o direito à prisão domiciliar ao dito cujo, com base em uma jurisprudência totalmente descompassada com a realidade e com o senso de justiça. Uma punição melhor do que essa só a aposentadoria compulsória aplicada aos juízes corruptos.

Digam-me com sinceridade: onde está a igual proteção nesse caso? Por que réus muito menos perigosos estão encarcerados enquanto esse nobre causídico está assistindo HBO na sua TV de Plasma em sua casa?

Outro exemplo: Caso Edmundo.

O jogador Edmundo – o animal – foi condenado a cumprir a pena de 4 anos e 6 meses de detenção, em regime semi-aberto, pela morte de três pessoas em decorrência de acidente de trânsito ocorrido no Rio de Janeiro.

Ainda não cumpriu sua punição por uma razão bem simples: ainda está pendente de julgamento no STJ o “agravo regimental contra decisão monocrática do Ministro relator, que rejeitou embargos declaratórios contra decisão monocrática, que indeferiu liminarmente Embargos de Divergência opostos a acórdão da Turma do STJ, que rejeitou embargos declaratórios contra acórdão da Turma, que negou provimento a Recurso Especial interposto contra acórdão da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que deu parcial provimento à apelação contra sentença proferida pelo Juízo de Direito da 17ª Vara Criminal da Comarca da Capital, que condenou o jogador, como já dito” (a notícia foi dada pelo juiz federal André Lenart). A última decisão também pode ser lida no blog “Reserva de Justiça“.

Simplesmente hilário. Acho que todo professor da disciplina “Recursos” deveria mostrar esse caso para os alunos aprenderem duas coisas: primeiro, o nome de todos os recursos; segundo, a total irracionalidade do nosso sistema recursal, que permite que absurdos assim ocorram.

Agora me diga com sinceridade: é ou não é um abuso do direito de recorrer?  Para mim, isso se chama litigância de má-fé. Aqui no Brasil, contudo, costuma-se dizer que é ampla defesa.

Ah, e, tecnicamente, ele é inocente, assim como o Wanderley, da sauna-gay do Casseta e Planeta, não é gay. E viva a presunção de inocência e o direito de recorrer para fins protelatórios…

Se os direitos fundamentais fossem músicos, certamente estariam, nesta hora, entoando, para o jogador Edmundo, os belos versos de Antônio Carlos e Jocafi:“Você abusou / Tirou partido de mim, abusou”.

Por ora, é só.

20 comentários em “Existe incompatibilidade entre o garantismo e a efetividade do processo penal?”

  1. boa, muito boa george. Desconhecia o caso do Edmundo.

    E quando a justica anda eh para ajudar a “nata”. Veja o caso da sumula 691 do STF. Nao, nao me refiro ao caso do Dantas. Mas a um outro caso em que o STF decidiu despreza-la, e ateh rediscuti-la. Confira os dados do processo:
    PACIENTE: APRESENTADOR DE TV/EMPRESARIO/PEGADOR
    CRIME: SONEGACAO DE IMPOSTOS
    ADVOGADO: THORON

  2. No que se refere ao HUGO MACHADO, nao sei por que critica tanto o Estado. Seu dinheiro nao provem dos erros/arbitrariedades do proprio Estado? Se o Estado soh cobrar o devido, se nao praticar uma inconstitucionalidade que seja, quem precisarah de um escritorio de advocacia?

    Nao eh o Estado que obriga o cidadao a arrumar um advogado se quiser seus problemas com a “justica”? Ateh para separar no cartorio, ha a obrigacao de levar um advogado a “tira-colo”, mesmo que o causidico nada saiba sobre somas e subtracoes, fato comum na terra brasilis.

    Pelo exposto, conclui-se:

    Se ha uma classe que nao pode reclamar do Estado eh a dos advogados!

  3. Abadia,

    não tenho procuração do Hugo, mas tenho certeza de que ele não pensa assim. Só uma mente pequena pensaria como você.

    Suas palavras foram indelicadas e demonstram, mais uma vez, que você não tem maturidade para participar de qualquer debate. Não sei porque ainda perco meu tempo lendo e respondendo as suas mensagens.

    George Marmelstein

  4. George,

    o caso do Edmundo eu já havia comentado no “Reserva de Justiça”, mas em outro posto, o do “E se John Lennon tivesse sido assassinado no Brasil?” 17 coment:

    http://reservadejustica.wordpress.com/2008/08/18/e-se-john-lennon-tivesse-sido-assassinado-no-brasil/

    Quanto ao post mem si, mais especificamente quanto ao Bandido Travestido de Advogado, primeiro eu posto a seguinte letra do Xangai (e/ou Odair Cabeça de Poeta mais Tom Zé) e depois faço uma releitura.

    (filomena e fedegoso)

    Eu bem que sabia
    Que esse cabra era ruim
    Filho de filomena não devia ser assim

    Filomena dá um jeito em fedegoso
    Tá fanhoso parecendo uma taboca
    Passou quatro mês no rio e vei simbora
    E agora tá falando carioca

    Gerimum ele diz que é abrobra
    Macaxeira ele diz que é aipim
    Arranjou mais um tal de bambolê
    Pra quê? pra fazer vergonha a mim

    Na maleta ele butou um clichê
    Pra dizer que veio de avião
    Mais eu soube que ele veio no poconé
    Pois é, lá embaixo no porão

    Menino, uma roupa que ele diz que é gasimira
    Tá pensando que aqui só tem maluco
    Ele diz que comprou no magazin
    Pois sim, como vai seu vuco-vuco?

    Leia-se:

    Filomena é a senhora Advocacia, e fedegoso é o Bandido travestido de Advogado.

    Girimum é impunidade e “Abrobra” é “Substantive and Procedural Due Process of Law”

    Macaxeira é Prisão especial, e Aipin é Garantismo.

    Bambolê é cometimento de delitos

    O resto da letra mantenha-se inalterada.

    Realmente não tem como defender a questão da “prisão” em sala de Estado maior (na verdade sofisma para privação da liberdade em acomodações melhores, e que para preencher os requisitos de sala de estado, deve diferir de uma prisão celular, não pode ter celas, etc) , seja para Advogados, seja para Membros do MP ou da Magistratura, e tampouco para Parlamentares Federais.

    Nesse ponto é epenas vergonha.

    Thiago.

  5. Só retificando:

    para fazer justiça a versão de Odair Cabeça de Poeta em “O Forró vai ser Doutor”, em sua versão, onde se lê Bambolê leia-se “sapato Alto”. “Para que? pra fazer vergonha a mim” :)

  6. Finalmente uma luz no fim do túnel, escrita por um dos garantistas mais extremados.

    A expressão “direito penal do ‘muy amigo'” é excelente:

    Veja o texto abaixo:

    Berlusconi, o inimigo e o direito penal do “muy amigo”
    Texto extraído do Jus Navigandi
    http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11637

    LUIZ FLÁVIO GOMES

    A tese central defendida por Zaffaroni (El enemigo en el derecho penal, Bogotá: Ibañez, 2006, p.19 e ss.) é a seguinte: o Direito penal sempre discriminou pessoas, logo, sempre existiu Direito penal do inimigo, que divide os seres humanos em pessoas e não-pessoas (cidadão e inimigo). Os cidadãos contam com garantias e submetem-se ao poder punitivo interno legítimo (o que observa o devido processo legal). Os inimigos (que são “entes daninhos ou perigosos”) estão sujeitos ao PPBI, ou seja, poder punitivo interno bruto (suspeitos ou réus sem direitos ou garantias), que é típico do Estado de Polícia.

    O Direito penal do inimigo é alimentado pela ideologia do inimigo, que é a fonte mais devastadora da concepção humanista da história e da cultura, isto é, das democracias liberais e sociais (republicanas). Todas as idéias de progresso, de dignidade humana, de autonomia do ser humano (frente a Deus e frente ao Poder), de liberdade, igualdade e fraternidade, que giram em torno de uma outra idéia superior que consiste em admitir o homem como centro do mundo (visão antropocêntrica, não teocêntrica nem tecnocêntrica), encontram na ideologia do inimigo o seu desafeto mais destrutivo e dissolvente (cf. Gregório Peces-Barba, em EL PAÍS de 01.07.08, p. 29).

    Dessa visão humanista e integradora (ou seja: includente) está se afastando, neste momento, a União Européia, que acaba de aprovar resolução que não só conduz à expulsão dos imigrantes ilegais, senão também que permite a prisão deles por longo período (de seis meses até quatro anos, em alguns países). A Itália, de Berlusconi e seus caudatários e asseclas déspotas, foi o primeiro país a aprovar o crime de “ser imigrante ilegal”. Trata-se, como se vê, de um novo exemplo do nazista Direito penal de autor que pune o sujeito pelo que ele “é”, não pelo que ele “fez”.

    Os legisladores, juízes, governantes e agentes públicos mais autoritários são, em geral, os que mais se corroem internamente e dão vazão às suas frustrações punindo duramente nos outros as culpas próprias (é uma espécie de purgação às avessas). Os mais corruptos e violentos tendem a ser (também) os mais algozes contra os outros.

    Enquadra-se seguramente nesse perfil o Primeiro-Ministro Berlusconi que acaba de revelar ao mundo (mais uma vez) a dupla face de todos os que governam ditatorialmente: para os inimigos a lei (dura lex, sed lex); para os amigos ou para o próprio governante o vale-tudo. Berlusconi, que é réu em vários processos, acaba de fazer aprovar uma lei que lhe assegura impunidade em todos eles (em geral, pesa contra o Il Cavaliere a acusação de corrupção, sendo expressivo o caso Mills, no qual ele teria pago 580 mil euros de corrupção).

    Por meio do Parlamento (que lhe é favorável) buscou o privilégio de não poder ser processado criminalmente enquanto for Primeiro-Ministro. Primeiro quis suspender o andamento dos processos criminais iniciados até 30.06.2002 (justamente os dele achavam-se nesse período). Depois conseguiu uma lei (sancionada em 23.07.08) que garante a improcessabilidade dos governantes italianos. Berlusconi, agradecendo os Senadores, disse: “Finalmente os juízes não podem mais me perseguir”. Esse é o Direito penal do “muy amigo”.

    Nas democracias formais mandava a vontade das maiorias. Diziam: a maioria aprovou, está aprovado! Essa concepção de democracia está morta. Hoje vale a democracia material, que exige do Parlamento a aprovação de leis coerentes com o Estado de Direito constitucional. Por meio de uma lei Berlusconi está afrontando o Direito e a Justiça. A Itália se converteu (como diz Ferrajoli) no reino da anti-política. A política (que representaria os interesses públicos e gerais) passou a ser subordinada aos interesses econômicos particulares do seu governante. Toda brutal concentração de poder conduz a abusos e arbitrariedades (diz Perfecto Andrés Ibáñez, EL PAÍS de 20.07.08, p. 21).

    Na Itália do Senhor Berlusconi são incontáveis as leis ad personam (leis feitas para ele ou para os interesses do seu grupo: lei da importação de capitais exportados, diminuição da pena no delito de balanço falso, diminuição de prazos prescricionais etc.). Esse imputado nobríssimo (Il Cavaliere) goza de todos os benefícios imaginários, com total violação ao princípio da igualdade e a todos os outros princípios republicanos. Uma das suas últimas pretensões atendidas consiste em impossibilitar a interceptação telefônica nos crimes de colarinho branco.

    Os italianos, que no final do século XIX e princípio do século XX fizeram a América, ou seja, que invadiram as Américas e se tornaram ricos e afortunados, agora (e isso é o que dizem os adeptos da Lega Nord, que apóia Berlusconi) num recente cartaz estampam a imagem de um índio norte-americano e nele se diz: “Eles sofreram a imigração. Agora vivem em reservas. Pense nisso”. Quando os italianos invadiram o mundo evidentemente não foram rechaçados. Interessava-lhes o discurso do humanismo, da inclusão. Agora a moeda é outra: ideologia do inimigo (expulsão, prisão, segregação, exclusão do imigrante).

    A pergunta que não se pode deixar de fazer: a Corte Constitucional italiana vai concordar com todas essas leis ad hoc? Haverá controle de constitucionalidade sobre elas? Já em 2004 esse Tribunal supremo dizia que o Parlamento não tem liberdade de escrever tudo que bem entende, sobretudo quando se trata do poder punitivo do Estado. Não se pode transformar em lei um privilégio odioso.

    No tempo do Estado de Direito legal (legalista), não se colocava em discussão a validade da lei desarrazoada, absurda, injusta (aliás, confundia-se vigência com validade). No Estado de Direito constitucional tudo é distinto. Nem toda lei vigente é válida (como nos ensina Ferrajoli). O julgamento de Nuremberg (que condenou vários nazistas) foi o símbolo de ruptura do velho Estado de Direito legalista. Os nazistas cumpriram a lei, mas violaram o Direito. Lei de injustiça extrema não pertence ao Direito (Radbruch, Alexy etc.). Será essa a conclusão da Corte Constitucional italiana em relação a todas as recentes leis ad personam aprovadas sob medida para Berlusconi?

  7. Professor George,

    Concordo com a tese posta. No entanto, é preciso deixar claro que, se não devemos pensar no “direito penal do inimigo” como solução para a criminalidade organizada, não devemos ter no garantismo uma porta escancarada para a impunidade. O fato é que, no Brasil, o garantismo está exarcebado para uma classe especial de criminosos, justamente aquela que mais prejudica o desenvolvimento social, impedindo a chegada do país num patamar em que se possa defender com mais realidade a aplicação da tese garantista “de primeiro mundo.” Não há como negar isso. A verdade está aí para todo mundo constatar. Você mesmo reconhece em seu texto que existe uma “discriminação indireta contra negros e pobres, inclusive por parte de juízes criminais.” Não seria menos correto afirmar que, na outra ponta da balança, há uma proteção direta aos poderosos no âmbito dos tribunais superiores, especialmente o STF, que nunca condenou ninguém. E o seu presidente ainda vem com discurso retórico de que nem sempre a condenação significa justiça no caso concreto, como se falasse alguma novidade. Ou seja, o fato é que o Estado, que tem a “obrigação de tratar todo cidadão com respeito e consideração”, isso não faz, mas nem de longe. O que ocorre é que, no Brasil, não se “equipara por baixo”, mas se desiguala por cima, garantindo-se a forma em detrimento do conteúdo, mesmo quando indiscutível que o cidadão dedica-se ao crime como modo reiterado de vida. Aqui, fico com a opinião do André Lenart, segundo a qual “o garantismo à brasileira não é um garantismo, no sentido estrito da expressão, mas um discurso legitimador da impunidade por meio do abuso do direito de defesa”, ou, como dito por você, “quando o advogado é bom, qualquer pessoa consegue o direito de aguardar o prazo prescricional em liberdade.” É uma questão de sistema, que no Brasil é feito para não funcionar, especialmente quando está em jogo garantias de privilegiados, que não precisam nem ser ricos para obter a proteção expressa do Estado. Veja só o seu exemplo da aposentadoria compulsória para o juiz corrupto. Isso é, ou não, um descalabro? Portanto, tratar um cidadão como esse “advogado” do seu texto como um verdadeiro advogado é realmente uma coisa de outro mundo, um desrespeito com essa nobre profissão, reconhecida no plano constitucional como essencial à administração da Justiça. Por essas e outras é que, observando algumas decisões dos nossos tribunais superiores, não vejo como não pensar que os ilustrados ministros são extraterrestres aqui na Terra. Não enxergam a realidade em nome de teses jurídicas muito bonitinhas, mas completamente divorciadas da realidade brasileira. E nem se diga que não seria possível uma decisão bem fundamentada em sentido contrário, pois a nossa ingenuidade não chega a tanto.
    O caso do Edmundo também parece brincadeira, mas ele tem um bom advogado, que litiga de má-fé e não recebe o tratamento que merecia do Judiciário. Será que a lei não oferece instrumentos para uma situação tão abusiva como essa?
    E assim continua o Brasil em frente, afinal de contas para isso existem os direitos e garantias fundamentais.

    Edmilson

  8. Professor George,

    estou ansiosa para comprar seu livro.
    Muito lúcida sua argumentação acerca das escutas. Totalmente de acordo. Acho que é preocupante a maneira como o Sr. Gilmar Mendes anda conduzindo essa questão. Parece coisa fabricada…
    Bom, escrevo para parabenizá-lo.
    Sds,
    Clarissa
    São Luís/Ma

  9. A questão das escutas não teve a rebatida no último post. Afinal, tem ou não um núcleo (cerne) essencial a ser protegido no direito fundamental do sigilo das comunicações telefônicas? A construção do STJ sobre o prazo do Estado de Defesa veio para proteger esse núcleo na minha opinião.

    E discordo sobre a questão do “garantismo à brasileira”. Qual seria o “garantismo” efetivamente correto a ser aceito? se for o do Ferrajolli em Direito e Razão, como o George citou, então tem muita coisa errada, e deficitária nesse Garantismo à brasileira, digo para mais, e não para menos.

  10. Acho também muito perigosa essa questão de não permitir a impugnação à decisão judicial de determinada pessoa porque aprioristicamente se determina que ele (a) é criminoso(a).

    Afinal de contas, para que servem os Recursos, Cada um deles (lembrando sempre que Recurso não conhecido infuencia na questão da recorribilidade)?

    É bom que se tenha tocado no caso Edmundo.

    Não conheço e nem nunca li os autos, apenas o que saiu na imprensa, e nos acórdãos disponíveis no site do TJ/RJ e STJ. Tampouco sou Vascaino, Palmeirense ou Flamenguista para opinar apaixonadamente. Mas o caso é simples?

    Pelo que foi mencionado, se não me engano, o Advogado não usou mais do que um mesmo recurso em sequência, como nas aberrações que vemos por ai:

    EmDecl nos EmDecl nos EmDecl nos EmDecl nos EmDiv. nos EmbDecl nos EmDecl nos EmDecl no REsp (que já é um recurso de uma decisão Estadual) Isso eu acho abuso. E aproveitando o ensejo: Quem Recorre mais, as pessoas naturais ou a União?

    Usar 1 Recurso permitido de cada vez (exceto obviamente quando da interposição do REsp e do RE), não consigo ver abuso de Direito de defesa.

    Qual impugnação poderia ser facilmente excluída do sistema?

    A Carta testemunhavel? o RESE? A correição Parcial? O Agravo por Instrumento? a Apelação? Os Embargos Infringêngentes e de Nulidade? os Aclaratórios (distinto no Penal e não Penal)? A Rescisória? o HC? o ROHC? o Mandamus? o ROMS? o RO Trabalhista? O Recurso Especial? o Agravo Regimental? Os Embargos de Divergência? o Recurso de Revista? Embargos (Trabalhista)? o Recurso Extraordinário? A Rescisória? A Ação Anulatória (Querela Nullitatis Insanabilis)? O Agravo em Execução? Os Embargos Ingringentes de Alçada?

    Fora o Penal, nos outros campos é tão prejudicial assim a questão da executoriedade de decisão despida de efeito suspensivo?

    E voltando ao caso Edmundo, a propria questão factico-normativa :Dolo eventual x Culpa Consciente, pode servir para mudar o Entendimento em última instância. Envolve-se ai também a velha e sempre nova discusão: Teoria Causal-Naturalista ou Teoria Finalista da Ação (o que o Agente fez ou o que o Agente quiz fazer?)

    A revisão criminal seria melhor acaso se mudasse o entendimento dos Tribunais Superiores, que do dia para noite podem mudar as bases do seu entendimento? A liberdade, axiologicamente (se é que é possível) repensada, leva a crer que não, sendo preferível gastar o último grão da ampulheta para constatar essa desconfortável constatação: Os Tribunais Superiores, à Guisa de Uniformizar o entendimento, acabam muitas vezes mudando de entendimento mais rápido do que se consegue acompanhar.

    Thiago.

  11. Thiago,

    é claro que existe um núcleo essencial da interceptação. No entanto, a abrangência desse núcleo é obtido a partir do princípio da proporcionalidade, sempre à luz do caso concreto.

    Se um grupo criminoso seqüestra um empresário, e esse seqüestro demora cinco ou seis meses para ser resolvido, a polícia deveria interromper as interceptações telefônicas assim que passasse os 60 dias?

    Mutatis mutandis, é o mesmo que ocorre, por exemplo, com um crime de lavagem de dinheiro. Vamos citar o caso do furto do Banco Central, onde foram subtraídos mais de cem milhões de reais.

    Após o crime (furto), os assaltantes começaram a lavar o dinheiro e não pararam mais até hoje. A cada dia, novas quantias são descobertas em grande parte graças às escutas telefônicas, realizadas com ordem judicial fundamentada. É possível estabelecer um prazo “a priori” nesse caso? Ora, se se trata de um crime que vem sendo cometido a conta gotas diante da enorme quantia que foi furtada, é natural que a interceptação também seja demorada.

    Como falei, nossa divergência é uma só: você não quer que o crime seja descoberto. Para você isso é ruim, é algo ditatorial e antidemocrático, digno dos piores estados nazi-fascistas.

    Para mim, não existe nada mais democrático do que cumprir uma lei elaborada para proteger valores constitucionais. E no caso, com toda certeza, quem está descumprindo a lei não é o juiz que autoriza as escutas.

    George Marmelstein

  12. A varinha de condão denominada princípio da proporcionalidade é a protetora do núcleo essencial dos Direitos Fundamentais? E isso pela teoria absoluta ou relativa concernente a proteção do Núcleo Essencial?

    Agora é outra pessoa que está atacando o Argumentador. Mas tudo bem.

    Eu quero que os delitos sejam descobertos sim, mas respeitando-se a Constituição, e não imitando o Presidente Lula e dizendo: “foda-se a constituição”

    Com a “prevenção técnica” e não com a “prevenção normativa”, com respeito aos Direitos Fundamentais dos investigados e e levando em conta que uma medida como a autorização da interceptação telefônica pode atingir pessoas que não tenham absolutamente nada a ver com o banditismo. Afinal de contas, o investigado não fala sozinho e nem apenas com bandidos ao telefone, ou fala? O que acontece é que muita gente fala de garantismo, como no tal do blog “reserva de (in) Justiça” sem ter a mínima noção do que o termo, filtrado por L. Ferrajolli, significa, senão veja-se:

    No reservatório seco acima mencionado, o autor diz que pretende desmacarar os farsantes defensores do “garantismo a Brasileira” e quando ele mesmo define o que seja garantismo, todos levamos um susto; Para ele garantismo é:

    “zelo pelo cumprimento dos prazos, determino prioridade à Secretaria, rejeito e não recebo denúncias incabíveis, ouço atentamente os argumentos da defesa, estimulo o réu a conversar diretamente comigo (até mesmo ao ouvir testemunhas), defiro dilações úteis ao bom esclarecimento dos fatos, explico ao acusado seus direitos, etc. Isso é garantismo, tal como idealizado e aplicado nos grandes centros ”

    Talvez a nomenclatura do que se tem entendido por Garantismo devesse ser trocada, pois não é o mesmo Garantismo que Ferrajolli, Hassemer e Canotilho entendem, e aplicada nos garndes centros.

    A lei deve ser cumprida, por óbvio, para permitir as interceptações, porém deve ser interpretada à luz da Constituição, e não à sombra da Portaria regulamentadora de investigações da PF e do MPF sob pena de tornarem-se….. Milícias, sim senhor.

    O prof Lênio Streck chama essa crise (baixa efetividade de normas Constitucionais) de “solidão Constitucional” na esteira de García Marquez em 100 Anos de Solidão, existente em países de democracia tardia como o Brasil. A nossa Constituição mais duradoura foi a imperial, jurada em 1824. Foram 65 anos, enquanto essa de 1988 agora é que vai completar 20 anos, esfacelada é verdade, e com inúmeros fantasmas decorrentes da ditadura (64/85), foram tantas emendas. Na Constituição de 1824 existia o Poder Moderador (poder/função Real) sob influência intelectual de Benjamin Constant.

    Nessa Carta de 1988, mutatis mutandis, temos uma ferramenta parecida, chamada : “princípio da proporcionalidade”. Quer dizer, não está diretamente no texto, mas quando o juiz quer encontrar uma ferramente, ele diz que ela estã no devido rpocesso legal ou no estado democrático de direito. Mas escrita mesmo, não está. Na função moderadora o Imperador poderia fazer o que quizesse, interferindo direta e frontalmente nos outros poderes (funções do poder, que é uno e indivisível).

    Com o princípio da proporcionalidade o Judiciário também pode fazer o que quizer (basta que tenha vontade aliado a criatividade). No Legislativo, pode declarar inconstitucional uma lei formal e materialmente votadas seguindo a constituição. No Executivo pode determinar o sequestro ou a transferência de verbas orcamentárias e pode decretar a Intervenção Federal. Tira o dinheiro da merenda escolar, do salário do professor e bota na saúde: resultado, não salvou vida nenhuma e ainda deixou uma criança com fome e um professor sem receber. Mas é preciso ter criatividade.

    Um juiz criativo com uma Constituição e uma doutrina consagradora da varinha de condão do princípio da proporcionalidade e do abuso de direitos fundamentais pode fazer grandes coisas, como também pode fazer coisas terríveis. Ele pode cumprir a constituição ou pode violá-la (nos termos do art. 213 do CP), interpretando-a a sombra da lei, e não à luz da Constituição.

    Thiago.

  13. Ia mes esquecendo:

    No caso do sequestro mencionado seria interceptação repressiva (e não preventiva), ai não vejo problemas em dilatar o prazo. No caso do furto no BC o Estado sem preocupa mais em violar direitos fundamentais do que opor barreiras e entraves facticos para impedir a lavagem de dinheiro, é mais comodo violar um D.F. do que opor outras resistências.

  14. Thiago,

    você tem razão quando diz que a proporcionalidade está sendo utilizada de forma equivocada para autorizar decisões arbitrárias. Mas aí não é problema da proporcionalidade e sim de quem a distorce.

    No meu Curso, defendo precisamente isto: utilizando a proporcionalidade corretamente, não é necessário invocar essa vaga idéia de “núcleo essencial”. A idéia de núcleo essencial só tem algum sentido se conjugada com a idéia de proporcionalidade. Como esta (a proporcionalidade) é mais objetiva e transparente, melhor ficar com ela.

    Aliás, estou com um post preparado sobre o mau uso da doutrina de Alexy aqui no Brasil. Depois publico.

    George

  15. George,

    Vc chegou a ler a decisão sobre operadora de telefonia que lhe enviei? Aguardo um comentário seu, inclusive para criticar. Confesso que não foi uma decisão fácil. Seu blog continua sendo leitura obrigatória para os amantes dos direitos fundamentais

    Fábio

  16. Grande George,
    Já que você citou o meu pai, devo dizê-lo que ele, embora crítico do Estado, pensa exatamente como você em todos os casos citados no blog, não aceitando muito os últimos pronunciamentos do STF, especialmente no caso da “cleptocracia”.
    Quanto a gostar de arbitrariedades por viver da advocacia, só acrescento ao seu notável comentário que isso seria tão absurdo quanto um médico que adorasse as doenças (em vez de pesquisar por vacinas) só para ter mais clientes no consultório.
    E, a propósito, só a título de informação, meu pai, desde que se aposentou como Desembargador Federal do TRF 5, não mais advogou, no sentido estrito da palavra. Tem atuado apenas como parecerista, tendo entre seus clientes, inclusive, eventualmente, a própria Fazenda Pública.

  17. Somente tive aceeso ao exposto acima hoje, porém afirmo que tudo que se diz respeito a carceragem no Brasil, é absurdo, injusto e ilegal e ninguém paga por isso, e ninguem toma nenhuma providência, as pessoas, principalmente DEFENSORES PÚBLICOS E ADVOGADOS, não estão preocupados realmente com esse prblema ou com justiça, hoje o único le´ma que se usa é cada um por si e ninguém por ninguém.
    Acho justo as pessoas pagarem por seus crimes independente de classe social ou raça, só não acho justo amontoar um bando de pobres e negros em umcubiclo, em condições insalubre e desumanas, condições essas que vocês advogados conhecem perfeitamente. Injusto e a lei penal aplicada apenas a pobres e negros,e funcionar apenas até a parte da condenação, quando chega a parte do ESTADO encarcerar conforme exige a mesma lei, o mesmo não ocorre, o que acontece é o que todos nós sabemos, mas preferimos ignorar.
    De quem é a responsabilidade maior da impunidade do ESTADO?
    quem pode e deve exigir que o ESTADO também cumpra as leis, principalmente ao que se refere ao assunto encarceramento de presos.
    Não sou profissional do direito, mas ao meu entender, um dos Orgãos principais que deveria tomar alguma providência seria a OAB, visto que as pessoas mais preparadas para defender e exigir direitos são os advogados.
    Com relação ao fato de o ADVOGADO CRIMINOSO ter conseguido o direito de cumprir a pena em regime domiciliar, mesmo que o mesmo não fosse advogado, mesmo que não tivesse poder acsitivo dentre outros, se fosse meu cliente, eu exigiria que o estado permitisse prisão domiciliar ou cumprisse com a sua parte, encarcerasse de forma digna. Não com conforno, mas mantendo no mínimo a segurança, higiene em fim, a dignidade humana.
    A desculpa de que o ESTADO não tem dinheiro para construir mais unidades prisional, é história, a realidade é que não ha interesse, visto que ninguém está preocupado com isso. Fala-se em justiça em direitos mas a muito que justiça e direito não existe, e a prova disso são os presídios brasileiros e a forma em que os familiares de presos são tratados e revistados nos presídios.
    Quando os policiais recebem ordens superiores para fazerem a tal da OPERAÇÃO nas favelas, na maioria das vezes existem sempre baixas, ou por parte da polícia ou por parte da população e quando ha baixa por parte de favelados, dizem sempre que o morto era traficantes, o que parece e que essas ordens de operação, são apenas para diminuir a quantidade de pobres no país, não importando de que lado seja a baixa, o importante e diminuir a quantidade de pobres.
    Face ao exposto, tenho esperança de que um dia, alguem obrigue a justiça ser justa e acabe com a impunidade em geral, principalmente a do estado.

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