Legislação Bêbada e na Contramão: Sobre a “Lei Seca” – por Adriano Costa


“De boas intenções o inferno está cheio”, diz o ditado popular. A entrada em vigor da Lei 11.705/08 (a “Lei Seca”) torna este brocardo ainda mais verdadeiro, no plano jurídico. É que, com o propósito louvável de combater os malefícios causados pelo álcool nas estradas brasileiras – que de há muito ultrapassaram qualquer margem de tolerabilidade –, eis que o legislador pátrio acaba de “brindar” a sociedade com mais uma norma flagrantemente inconstitucional.

Desde logo, devo enfatizar que minha hostilidade à dita lei não decorre do fato de que sou potencial candidato a ir parar atrás das grades por causa dela (bastam 2 bombons com recheio de licor para estourar o limite legal, noticiou a Folha). Na verdade, o que estarrece e causa perplexidade é o total desconhecimento demonstrado sobre o art 5º, LXIII da CF, que assegura a qualquer acusado a prerrogativa de ”permanecer calado”, ou seja: o direito fundamental de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).

A lei alterou o § 3º do art. 277 do Código de Trânsito para sujeitar às penalidades previstas no art. 165 do CTB (multa, suspensão do direito de dirigir por um ano, retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação) o condutor que “se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos” previstos no caput do mesmo artigo: “testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado”.

Sem muito esforço constata-se que o diploma está na “contramão” da jurisprudência do STF. A Corte tem prestigiado o mencionado inciso LXIII do art. 5º em diversos julgados. No HC 83.096 (Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 18.11.03), assentou que “o privilégio contra a auto-incriminação, garantia constitucional, permite ao paciente o exercício do direito de silêncio, não estando, por essa razão, obrigado a fornecer os padrões vocais necessários a subsidiar prova pericial que entende lhe ser desfavorável.” O precedente permite concluir, então, que o Pretório Excelso não admite a coerção física e pessoal como meio de produção de prova, mormente contra a própria pessoa.

A matéria nos remete a julgamento histórico do STF sobre a garantia contra a auto-incriminação, a saber, o Habeas Corpus nº 71.373-4/RS, que teve como relator para o acórdão o Min. Marco Aurélio. Discutia-se a possibilidade de se compelir coercitivamente o investigando a realizar exame de DNA, para aferir a paternidade. No caso, mesmo diante de outro direito fundamental de indiscutível relevância – o de conhecer a própria origem, componente essencial do desenvolvimento da personalidade –, o STF manteve o privilégio supracitado. Por outro lado, estabeleceu que a negativa implicaria em presunção de paternidade, entendimento que veio a cristalizado na Súmula 301 do STJ. Desta forma, o Pretório Excelso “balanceou” os direitos fundamentais em conflito: preservou o direito a não se auto-incriminar, mas deixou claro que a recusa injustificada ensejaria conseqüências processuais. Nada mais razoável.

A Lei 11.705, por outro lado, não cria mera “presunção de culpa” contra o condutor: pune, simplesmente, a recusa em si mesma. Ora, tamanha violação contra o direito fundamental em estudo não pode se sustentar. A simples idéia de aplicar penalidades e/ou medidas administrativas a alguém pelo fato de se recusar a “soprar no bafômetro” é de uma truculência singular. É preciso dar um basta à “legislação de pânico”, que agride frontalmente os direitos fundamentais e nada resolve. Somente os colegas advogados que atuam na área penal têm motivos para sorrir com a “Lei Seca”, pois deverão ter finais de semana bastante movimentados até que sobrevenha a declaração de inconstitucionalidade (assim espero).

E eu achando que nunca mais teria que fugir de blitz…

11 comentários em “Legislação Bêbada e na Contramão: Sobre a “Lei Seca” – por Adriano Costa”

  1. Driconildes,

    também não havia me tocado que a lei considera como crime a recusa em se submeter ao bafômetro. Realmente, uma flagrante violação das garantias processuais.

    Depois vou comentar com mais calma, preparando um post sobre o tema que merece uma reflexão mais séria (de preferência, tomando uma cervejinha… em casa, pra não ter problema depois)…

    George

  2. Prezado Adriano, sou leitor assíduo aqui do blog. Aguardava uma manifestação sobre mais um absurdo legislativo praticado no Brasil. Esse pensamento de que a lei resolve tudo é de uma enorme ingenuidade. Agora, a aprovação da lei é algo inacreditável. Onde está o controle preventivo de constitucionalidade. Cadê as CCJs das duas Casas do Congresso Nacional? E o exercício do veto pelo Presidente? Até um parlamentar poderia ter levado essa excrescência ao STF por meio de mandado de segurança. Agora, seguramente virá o STF para declarar a inconstitucionalidade. De certo modo, é até bom, porque a discussão ganhará mais repercussão e os direitos fundamentais sairão mais fortalecidos. Parabéns pelo texto. Um grande abraço.

  3. Prezado Fabrício, não poderia concordar mais com você. Pretendia abordar a evidente inexistência de controle prévio de constitucionalidade, mas o post ficaria um tanto longo. Ainda bem que você o fez. De resto, aguardemos que o STF seja provocado a se manifestar o mais cedo possível. Aquele abraço – e nada de bombons com licor, hein!

  4. Pois é, não se podia dirigir depois de beber. Agora, também não se deve dirigir depois de comer!

  5. Professor George,

    concordo que o direito fundamental(de não produzir provas contra si) deve ser preservado.
    Mas, vejo também um outro lado. A severidade desta lei inibirá imprudências no trânsito, e porá a salvo um outro direito fundamental – o direito a vida. Entendo que Há colisões de princípios.

  6. Amigos,
    Não se pode negar que a norma mencionada padece de uma inconstitucionalidade chapada (sem nenhum trocadilho): simplesmente se ofende o núcleo de uma garantia fundamental veiculada por uma regra constitucional atribuída (o que para alguns, precisamente por ser regra, não comportaria sequer ponderação). De fato, não vejo como ter sido fruto de uma ponderação em abstrato válida: nem mesmo se fez uma adequada seleção dos fatos para o sopesamento entre vida e a garantia ao silêncio. Ao não se mencionar os motivos da recusa, colocou no mesmo saco toda e qualquer hipótese fática, ou seja, vedou-se em todo e qualquer caso a aplicação da garantia. Tal extremismo não se concilia com situações de ponderação. Assim, não vejo como o direito à vida ou outro direito fundamental justificar esse radicalismo.

  7. Eu discordo totalmente, não existe “direito fundamental de não produzir prova contra si mesmo”, trata-se de uma interpretação, visto que a constituição não o menciona.

    O “nemo tenetur se detegere” é um privilégio apenas porque o magistrado pode formar a sua convicção através de outros meios, sendo estes fora do domínio do acusado.

    No caso da lei, entendo que não pode ser aplicado o “princípio” mencionado, visto que a perícia do bafômetro é necessária para que se constate uma situação de fato, sem a qual iria obstruir a aplicação da referida lei.

    A lei traz sanção a qualquer quantidade de álcool no sangue: se não puder exigir os meios de constatar essa quantidade de alcool, fica inevitavelmente, sem aplicabilidade.

    Isso é a força do principio da legalidade Art.5, II. Agora a lei determinou sanção ao descumprimento de qualquer dos mecanismo para constatar presença de alcool no sangue. O que anteriormente não fazia, dando margem a interpretação de que “ninguém era obrigado a produzir prova contra si mesmo”. A autoridade policial constatava isso pelo “achometro” muito pior do que se realizar um procedimento sério.

  8. Caros amigos, o justo meio-termo, expressão Aristotélica, é necessário nesse momento. Há outros meios de se averiguar se o cidadão está em condições de dirigir ou não. Quantos brasileiros não tomam sua cervejinha e tem condições de ir para casa dirigindo tranquilamente. Claro que os excessos hão de ser coibidos. Mas para isso uma simples observação já é suficiente. Essa lei, flagrantemente inconstitucional, infelizmente foi aprovada sem controle prévio. E nosso amigo Lula? Degustador de boa bebida deixou essa sem o seu veto juridico? Essa lei é mais rigorosa que a da maioria das leis dos Estados Norte Americanos. Isso é um absurdo. Temo pela onda de desmando que as “pequenas autoridades”, claramente despreparadas, nos proprorcionarão.

  9. A LEI SECA É BURRA, ANACRÔNICA E DIGNA DOS GOVERNOS AUTORITÁRIOS OU TOTALITÁRIOS.

    O simples fato de uma pessoa tomar um ou dois copos de vinho ou de cerveja, num almoço com a família, e sair dirigindo normalmente sem desrespeitar nenhuma norma de trânsito ou colocar bens jurídicos em risco , não pode ser punido administrativa ou penalmente , sob pena de se incorrer numa aberração jurídica, já que a conduta, além de adequada às normas de trânsito, não representa qualquer lesão ou perigo efetivo ou potencial a qualquer objetividade jurídica.

    “nulla necessitas sine injuria ou princípio da lesividade ou ofensividade – não há necessidade se não há também uma relevante e concreta lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico tutelado; nulla injuria sine actione ou princípio da exterioridade da ação, que proíbe a criação de tipos penais que punam o modo de pensar, o estilo de vida. Há somente a punição pela ação ou omissão do homem, pois o direito penal é do fato e não do autor”
    O CREMESP -Conselho Regional de Medicina do Estado São Paulo, afirma que : Substância Psicoativa é aquela que possui a capacidade de alterar o comportamento, o humor e a cognição de um ser vivo, dividida em dois grupos : as drogas ilegais (maconha, cocaína, crack e outras ) e as lícitas(como o álcool), assim, quem dirigir alcoolizado somente cometerá o delito se realmente por em risco a segurança do trânsito, ou seja estar sob a influência de substância psicoativa, já que álcool também é substância psicoativa.
    Daí se há de concluir, num rigor de lógica aplicada, para que se configure a infração administrativa ou o crime de embriaguez ao volante (artigos 165 e 306 do CNT), não é suficiente a simples condução de veículo automotor após ter ingerido álcool, mister se faz que o motorista conduza o veículo, sob a influência do álcool, isto quer dizer : de forma anormal, irresponsável, ou perigosa, só assim restaria comprovada a ameaça de lesão ao bem jurídico tutelado, isto é expor efetivamente em risco a segurança viária (perigo concreto indeterminado).
    O Ministro VICENTE CERNICHIARO, no seu relato ao acórdão da 6ª Turma do STJ no Resp 46.424, contrário às presunções legais, assevera-se que:

    “… não se pode punir alguém por crime não cometido . Por isso , a adoção de crimes de perigo abstrato não se mostra adequada ao moderno Direito Penal, que se fundamenta na culpabilidade …”

    Em suma, a lei dever punir rigorosamente aquele que, sob a influência do álcool ou não, venha conduzir veículo de forma anormal ou perigosamente, expondo a risco a segurança viária.

    • Essa tal de lei seca é um absurdo, a blitz realizada ontem tratou pessoas que tomaram um simples aperitivo como se fossem bandidos, tendo suas imagens denegridas em rede nacional. Há que se ter um bom senso, abordando-se apenas aqueles que estão cometendo alguma infração de trânsito. Não é possível que uma pessoa de boa índole, que trabalha a semana inteira, não possa apreciar um copo de vinho ou uma cerveja com uma pizza, sem ver sua imagem veiculada, em rede nacional, como se fosse um bandido. Cabe ao judiciário, até de ofício, revogar essa lei burra, anacrônica e só vista em Estados totalitários.

  10. A tão controvertida lei seca, não passa de uma mera tentativa de Tapar Buracos”. O Estado não educa futuros motoristas, provocando a consciência desses desde o seu mais baixo grau de escolaridade, em uma progressão para um futuro em que leis arbitrárias como essa – e outras – não precisem mais fazer parte de nosso viver. Essa operação “Tapa buracos” acontece em quase todas as instituições do Estado, como a educação, a saúde, a previdência e outras. A exemplo da educação: as cotas para negros. Essas cotas são discriminações positivas, adquiridas após muitas lutas de movimentos sociais. Mas só foram legitimadas pelo Estado por “mascararem” o problema da educação no Brasil, que é falha e nenhum governo resolve por não obter resultados imediatos.
    A lei seca, além de violar direitos fundamentais, carece de eficácia em relação a aplicabilidade, pois, de que adianta se ter uma lei, se não se tem suporte para aplicá-la. De que adianta se ter uma lei, se não se tem agentes para fiscalizar e não se têm bafômetros suficientes para essa fiscalização? Por Exemplo, o estado do Rio Grande do Sul: existiu uma fiscalização forte no início da lei, porém não se tinham bafômetros sufucientes para axiliar.
    Concordo que o Brasil tem altos indices de crimes de trânsito por embriagues ao volante. Mas esses índices são causados pela falência de setores do Estado, e não somente por culpa do infrator. Já é da cultura brasileira tomar aquela cervejinha depois do trabalho, ou em um churrasco. E esse mínimo teor alcólico que se faz presente no sangue, deve causar uma interpretação subjetiva, e não uma generalizada, como preve a nova lei. A antiga lei configurava como embriagado, aquele motorista que dirigisse em zigue-zague, que dirigisse de forma perigosa, constatadas na abordagem de forma subjetiva, não generalizada.
    Estou fazendo um trabalho para conclusão do 2º semestre da minha faculdade, no qual eu e mais 3 colegas vamos defender a tese do “direito fundamental de não gerar provas contra si mesmo”, e esse texto acima irá me ajudar a embasar os nossos argumentos.

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