Nada melhor do que uma sexta-feira malemolente, depois de uma semana puxadíssima, para comentar um episódio do Boston Legal, um seriado simplesmente fantástico.
O episódio em questão é o S1E8 – Terapia Intensiva. O caso é o seguinte: um respeitado senhor, no período de natal, tinha como “ganha pão” ser o papai noel de uma determinada loja de departamentos. Ele fazia esse papel há oito anos e sempre desempenhou com muito profissionalismo e com muita boa vontade a sua função.
Ocorre que o dito senhor era um homossexual transformista. Ou seja, de dia, ele era papai noel; de noite, mamãe noel. A loja empregadora não sabia dessa vida dupla do seu funcionário. Quando descobriu, não teve dúvidas: demitiu o dito cujo.
Ninguém melhor do que Allan Shore para defender o caso, na função de advogado do papai noel gay.
Numa das cenas mais engraçadas do programa, o juiz questiona ao advogado: “Dr. Shore, o senhor quer que eu permita que crianças sentem no colo do seu cliente? Você sentaria no colo dele?”
Não é preciso nem dizer qual foi a resposta do brilhante advogado: “Claro, e por que não?” e sentou confortavelmente no colo do seu cliente.
Para não tirar a graça do episódio, não vou dizer qual foi o veredicto final.
Ao mesmo tempo, aproveito o gancho desse curioso caso para comentar um lastimável episódio que ganhou as manchetes da imprensa brasileira. Falo da prisão dos militares que assumiram sua homossexualidade em um programa de televisão (veja a notícia aqui).
Vou evitar de tratar do caso concreto em si para falar de algo mais abstrato, que é a criminalização da pederastia, prevista no artigo 235 do Código Penal Militar:
“Pederastia
Artigo 235: Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar”.
O texto legal é de uma redação extremamente infeliz. O tipo penal se chama “pederastia”, mas, ao mesmo tempo, pune o ato libidinoso “homossexual ou não”. Ou seja, na verdade, não está punindo a pederastia em si, mas o ato libidinoso praticado no interior de unidades militares. Se estivesse punindo a pederastia, seria, sem dúvida, inconstitucional, pois, realmente, a Constituição proíbe qualquer tipo de discriminação por opção sexual. Portanto, em tese, o art. 235 do CPM não viola a Constituição.
O problema não é no tipo penal propriamente dito, mas na interpretação que a Justiça Militar realiza na prática.
Analisando a jurisprudência do Superior Tribunal Militar sobre o assunto, observa-se que todos os casos envolvendo a aplicação do art. 235 do CPM que chegaram ao STM referiam-se a relações homossexuais. Não há nenhum processo criminal, que chegou ao STM, onde um heterossexual tenha sido condenado com base no citado artigo.
Assim, embora o tipo legal não seja, em tese, inconstitucional, a interpretação realizada pela Justiça Militar é, sem dúvida, discriminatória.
Esse fenômeno é conhecido como discriminação de fato ou indireta. Esse tipo de discriminação ocorre quando existe uma norma jurídica válida, cuja aplicação concreta pelas autoridades competentes dá-se de forma sistematicamente anti-isonômica e prejudicial a determinado grupo.
A melhor forma de aferir a violação desta dimensão do princípio da igualdade é através do recurso à estatística. No caso específico do artigo 235 do CPM, basta fazer uma simples pesquisa na jurisprudência do Superior Tribunal Militar para perecer que, em 100% das situações, o condenado era homossexual. Ou seja, não há, pelo menos na jurisprudência do STM, qualquer caso de ato libidinoso heterossexual que tenha sido punido com base no art. 235 do CPM, demonstrando que, mesmo que a norma seja, em tese, válida, a aplicação concreta está sendo patentemente discriminatória.
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Ainda dentro do mesmo assunto, vou fazer algumas ponderações, até para tentar entender o ponto de vista das forças armadas.
As forças armadas se sustentam com base em dois princípios: a hierarquia e a disciplina. Tais princípios, inclusive, possuem estatura constitucional (art. 142).
Há uma presunção, muito mais intuitiva do que empírica, de que um militar de patente superior não será respeitado pelos seus subordinados se assumir a sua homossexualidade. Do mesmo modo, presume-se que um militar gay possa comprometer a unidade do grupo, já que muitos soldados não aceitarão dividir a sua intimidade com homossexuais.
Essa presunção talvez seja, em grande medida, correta, embora não se possa afirmar com absoluta certeza ante a falta de estudos sérios e imparciais. E mesmo que fique demonstrado que a presença de militares homossexuais atrapalhe o desempenho da tropa, penso que isso será muito mais fruto da intolerância hoje prevalecente do que da falta de combatividade dos soldados gays.
Em vários países mais tolerantes, como a Holanda, o exército admite que homossexuais façam parte das forças armadas e não há demonstração de que isso tenha trazido qualquer prejuízo para a atividade-fim. Pelo menos, os textos que li não mencionam isso.
Por isso, acredito que seja a hora de adequar a tradição militar à Constituição. Se, em médio ou longo prazo, essa opção se mostrar desastroza, não haverá qualquer problema em voltar atrás e impedir que os homossexuais ocupem postos militares. Sem tentar, nada vai mudar.
Aliás, quem diria, há cinqüenta anos atrás, que mulheres estariam pilotando caças da Aeronáutica muitas vezes com desempenhos melhores do que os homens?
George,
Vou fazer uma pergunta que, na verdade, revela minha total ignorância sobre o Direito Militar: o fato do STM não considerar incurso no art. 235 a prática heterossexual se deve ao fato de realmente não considerá-la ou de não chegar nenhum caso de sexo hetero ao STM e tribunais militares? Abraço