O caso do bolo de casamento gay

Mais um slide que publiquei lá no Instagram comentando um caso beem interessante: o caso do bolo de casamento gay (same-sex wedding cake case), julgado esta semana pela Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS).

É um julgamento muito importante, mas é preciso ter bastante cautela quanto ao real sentido do que foi julgado. O tema deve ser compreendido muito mais no contexto da liberdade de expressão do que do direito da antidiscriminação. Enfim, aqui vai o slide:

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Existe um direito fundamental de bloquear estradas?

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Publiquei lá no Instagram (@direitos_fundamentais_net) um post/slide sobre o caso Schmidberger v Austria, julgado em 2003 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
É um caso muito interessante para entender os limites do direito de manifestação quando o seu exercício pode causar transtornos ao trânsito de veículos ou à livre circulação de mercadorias. E o mais legal é que é uma espécie de versão invertida do protesto dos caminhoneiros a que estamos assistindo no Brasil.
Esse tipo de inversão é sempre útil para permitir uma análise mais imparcial do problema que queremos enfrentar, pois nos permite fixar balizas mesmo quando o “nosso lado” não é beneficiado. É uma forma prática de buscar um “acordo ou consenso por sobreposição” (Rawls), capaz de proteger imparcialmente todos os interesses em jogo, dentro da ideia básica de que todas as pessoas merecem ter seus direitos respeitados em igual medida.
Então, se você é a favor do exercício incondicional e ilimitado do direito de protesto no caso dos caminhoneiros, também deve adotar a mesma postura quando o protesto vier de outros grupos, inclusive prejudicando os caminhoneiros. Do mesmo modo, se você acredita que é preciso estabelecer alguns limites para minimizar os transtornos causados aos direitos de terceiros, então esses limites devem valer para outras situações semelhantes. Em outras palavras: em se tratando de limites para o exercício do direito de manifestação, não se pode estabelecer critérios ad hoc, que ficam mudando conforme a conveniência ou os interesses políticos em jogo. O que vale para um grupo vale para o outro.
Sei que o protesto dos caminhoneiros tem alguns componentes que dificultam a simplificação do debate. Mas considero, sim, que o caso deveria ser analisado à luz do direito fundamental de manifestação (com os limites a ele inerentes) e não como um caso de greve ou lock-out, já que a reivindicação não está relacionada a disputas trabalhistas. O movimento é um claro protesto contra o governo e não um conflito laboral. Sendo assim, deveria ser analisado à luz da liberdade de manifestação, reunião e expressão, com todos os ônus argumentativos que derivam da estrutura normativa dos direitos fundamentais.
Enfim… é apenas minha contribuição para o debate.

Aqui o slide originalmente publicado no Instagram:

 

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Os Pássaros Têm o Direito de Voar?

Copy of Como eu escrevo

Em outubro de de 2017, tive oportunidade de julgar um caso bem interessante.

A rigor, o ponto central do debate não tinha muita coisa a ver com a questão dos direitos dos animais. Era apenas um pedido de anulação de multa aplicada pelo IBAMA cumulado com um pedido de devolução de alguns pássaros silvestres criados em cativeiro que haviam sido apreendidos durante uma fiscalização.

O pedido de devolução dos pássaros não tinha como ser deferido por uma impossibilidade prática: os pássaros já haviam sido libertados e devolvidos à natureza. Apesar disso, optei por fazer uma análise indireta do direito dos pássaros à liberdade (de voar).

Sei que é um tema polêmico, mas, a meu ver, a criação de pássaros silvestres em gaiolas constitui, na maior parte das situações, tratamento cruel vedado constitucionalmente e foi por isso que fiz questão de incluir esse debate na sentença.

Eu podia ter aprofundado a argumentação ético-filosófica, até porque, em minha tese de doutorado, tratei da expansão do círculo ético e conheço muitos autores que reforçariam a minha posição. Mas optei por uma argumentação mais minimalista para não desviar o foco do problema de fundo. De qualquer modo, há uma sutil menção ao enfoque das capacidades (inspirado em Amartya Sen e, especialmente, Martha Nussbaum), que foi utilizado para sugerir a existência de um direito de voar dos pássaros.

Na fundamentação, há também o reconhecimento do chamado viés de confirmação para sustentar a violação do direito ao contraditório e à ampla defesa no processo administrativo. Como não se costuma encontrar alusões aos vícios cognitivos sendo utilizados como critérios jurídicos, acho que também é um ponto que merece destaque.

Aqui vai a parte essencial da sentença:

Processo nº 0006688-97.2010.4.05.8100 – 3a Vara Federal/CE

Juiz Federal: George Marmelstein

 1 RELATÓRIO

(…)

2 FUNDAMENTAÇÃO

Os seguintes fatos que motivaram a presente ação são incontroversos: (a) o autor é criador de pássaros silvestres; (b) após fiscalização do IBAMA, sete pássaros foram apreendidos e, em seguida, reintroduzidos em ambiente natural; (c) foi aplicada multa em razão das irregularidades apontadas pelo IBAMA.

Diante desses fatos, o autor pede, em termos sintéticos, o reconhecimento da nulidade da fiscalização do IBAMA, com a anulação da multa aplicada e a consequente devolução dos pássaros.

Quanto ao pedido de anulação da multa, a razão está com o autor. De fato, a multa foi aplicada antes mesmo de ter sido dada oportunidade de o autor apresentar a documentação que justificaria a posse das aves, o que representa uma clara violação do devido processo. Em outras palavras: o IBAMA aplicou a multa e apenas depois analisou a documentação. Mesmo que várias inconsistências na documentação tenham sido constatadas, o certo é que a punição somente pode ser aplicada após a apreciação da defesa do eventual infrator.

Além disso, o próprio IBAMA reconheceu que uma boa parte da documentação estava regular, ou seja, seis dos sete pássaros tinham origem legal. As inconsistências apontadas pelo IBAMA em sua contestação somente foram apontadas depois que a multa foi aplicada, indicando que o órgão ambiental primeiro aplicou a sanção para somente depois encontrar a infração. Em outras palavras: o órgão ambiental foi contaminado pelo chamado viés da confirmação, tentando encontrar razões para justificar sua atuação depois que a decisão de condenar já havia sido tomada.

Não é preciso nem mesmo adentrar no mérito sobre a possibilidade de fiscalização in loco realizada pelo IBAMA. Basta reconhecer que houve uma inversão processual em que o direito de defesa foi prejudicado pelo desejo do órgão ambiental de justificar a sua atuação.

Diante disso, o auto de infração deve ser anulado, inclusive com a suspensão da cobrança da multa aplicada.

Por outro lado, o pedido de devolução dos pássaros não pode ser acolhido. Primeiro por uma impossibilidade fática: conforme informações do IBAMA, os pássaros já foram reintroduzidos ao ambiente natural. Segundo por uma impossibilidade jurídica: é questionável o direito do autor de manter a posse dos pássaros.

Quanto a esse segundo ponto, há uma razão formal para negar o pedido. Conforme apontado pelo IBAMA, a documentação apresentada pelo autor possui diversas inconsistências que põem em dúvida a sua regularidade. Além de ter contradição entre os números das anilhas e as espécies de pássaros, também foram apontados problemas no nome dos proprietários, bem como no local de criação desses pássaros.

Além disso, há um aspecto que, embora não seja decisivo para a solução desse caso, é extremamente importante do ponto de vista da proteção dos animais: é bastante questionável se é válida uma licença ambiental que dá o direito a uma pessoa de criar um pássaro em cativeiro, sobretudo em gaiolas.

Os pássaros são seres sencientes que possuem a capacidade de voar. Nessa condição, qualquer medida que retire desses pássaros essa capacidade fundamental deve ser vista, em linha de princípio, como uma medida que submete os animais a crueldade e, nessa condição, viola o artigo 225, §1o, inc. VII, da Constituição Federal[1].

O Supremo Tribunal Federal tem sistematicamente anulado práticas que submetem os animais a crueldade, tal como ocorreu no julgamento do caso da Farra do Boi[2] e da Briga de Galo[3]. Mais recentemente, no julgamento da ADI 4.983/CE, o Supremo Tribunal Federal, conforme voto do Min. Luís Roberto Barroso, assinalou:

“A Constituição veda expressamente práticas que submetam animais a crueldade. O avanço do processo civilizatório e da ética animal elevou o resguardo dos seres sencientes (i.e. , capazes de sentir dor) contra atos cruéis a um valor constitucional autônomo, a ser tutelado independentemente de haver consequências para o meio – ambiente, para a função ecológica da fauna ou para a preservação das espécies” (STF, ADI 4.983/CE, voto do min. Luís Roberto Barroso).

Com relação à criação de pássaros em gaiolas, embora não exista nenhuma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, a matéria não é nova na jurisprudência global. De fato, no Caso “People For Animals vs Md Mohazzim & Anr“, a Alta Corte de Delhi, na Índia, reconheceu expressamente que os pássaros possuem o direito de serem livres e que o seu aprisionamento em gaiolas viola esse direito[4].

Veja-se que, no presente caso, há várias outras razões, além do direito dos pássaros à liberdade, para se negar ao autor o seu pedido. De qualquer modo, é importante trazer esse tema ao debate até para que a sociedade possa refletir até que ponto criar pássaros em gaiolas é uma medida civilizatória ou não. Independentemente disso, seja por razões práticas, seja por razões jurídicas, os pássaros apreendidos não podem ser mais devolvidos ao autor.

3 DISPOSITIVO

Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO DESTA AÇÃO tão somente para anular o autor de infração e a respectiva multa lavrada contra o autor. Quanto ao pedido de devolução dos pássaros, JULGO O PEDIDO IMPROCEDENTE.

O IBAMA arcará com as custas processuais e com os honorários de sucumbência, que arbitro em 15% sobre o valor atribuído à causa.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Fortaleza-CE, 24 de outubro de 2017

GEORGE MARMELSTEIN LIMA- Juiz Federal da 3ª Vara

[1] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

[2]A ementa do acórdão é a seguinte: “COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inc. VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda a prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’ (STF, RE 153.541-1-SC, rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio).” Veja-se trecho do voto do Min. Marco Aurélio, relator para o acórdão, que sintetiza o argumento vencedor: “é justamente a crueldade o que constatamos ano a ano, ao acontecer o que se aponta como folguedo sazonal. A manifestação cultural deve ser estimulada, mas não a prática cruel. Admitida a chamada ‘farra do boi’, em que uma turba ensandecida vai atrás do animal para procedimentos que estarrecem, como vimos, não há poder de polícia que consiga coibir esse procedimento. Não vejo como chegar-se à posição intermediária. A distorção alcançou tal ponto que somente uma medida que obstaculize terminantemente a prática pode evitar o que verificamos neste ano de 1997. O Jornal da Globo mostrou um animal ensanguentado e cortado invadindo uma residência e provocando ferimento em quem se encontrava no interior. Entendo que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência do disposto no inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal. Não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República. Como disse no início de meu voto, cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e decorre das circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis buscarem, a todo custo, o próprio sacrifício do animal”.

[3]“CONSTITUCIONAL. MEIO AMBIENTE. ANIMAIS: PROTEÇÃO: CRUELDADE. ‘BRIGA DE GALOS’. I. – A Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre ‘galos combatentes’, autoriza e disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição Federal não permite: C.F., art. 225, § 1o, VII. II. – Cautelar deferida, suspendendo-se a eficácia da Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro.” (STF, ADI no 1.856/MC, rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 22/9/2000).

[4] Eis, no original, o trecho relevante do julgamento: “after hearing both sides, this Court is of the view that running the trade of birds is in violation of the rights of the birds. They deserve sympathy. Nobody is caring as to whether they have been inflicting cruelty or not despite of settled law that birds have a fundamental right to fly and cannot be caged and will have to be set free in the sky. Actually, they are meant for the same. But on the other hand, they are exported illegally in foreign countries without availability of proper food, water, medical aid and other basic amenities required as per law. Birds have fundamental rights including the right to live with dignity and they cannot be subjected to cruelty by anyone including claim made by the respondent. Therefore, I am clear in mind that all the birds have fundamental rights to fly in the sky and all human beings have no right to keep them in small cages for the purposes of their business or otherwise” (Disponível on-line: http://tinyurl.com/y8l97aox).

Como compreender e conversar com alguém que não está disposto a mudar de lado

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Interpretamos o mundo pela luz das nossas crenças e valores. Apesar do truísmo dessa afirmação, não podemos subestimar seu impacto na forma como agimos e nos posicionamos diante de questões reais que nos afeta. Por causa disso, cometemos muitos erros de avaliação, compreensão e julgamento. Seja em questões banais, como a interpretação de um lance em um jogo de futebol, seja em questões de grande impacto social, como a interpretação jurídica da constituição, estamos sujeitos a falhas de cognição em função de nossas convicções consolidadas que pré-orientam a formação do juízo.

Um dos erros cognitivos mais comuns é o chamado desejo de confirmação (viés de confirmação). Este vício cognitivo nada mais é do que a tendência de buscar, interpretar, catalogar e lembrar de informações que confirmem aquilo que queremos que seja confirmado. Estamos predispostos a receber com facilidade e sem críticas as informações que tendem a solidificar nossas crenças e a rejeitar qualquer possibilidade alternativa que possa colocá-las em risco. Somos seletivos na coleta de evidências. Tendemos a ignorar ou a rejeitar qualquer informação que suporte uma conclusão diferente daquilo que acreditamos. Nossas percepções são ideologicamente enviesadas: superestimamos as informações que reforçam nossas opiniões e subestimamos o contrário. Diante de informações contraditórias sobre o mesmo assunto, valorizamos mais aquelas que se encaixam na nossa rede de crenças e lembramos com mais frequência dos dados confirmatórios, apagando inconscientemente qualquer vestígio de ameaça ou contradição. Mais ainda: estamos propensos a interpretar qualquer dado que seja apresentado como algo que confirma nossas convicções. Mesmo quando a informação parece se chocar diretamente com aquilo que defendemos, há uma inclinação em reconstruir o seu sentido para parecer favorável ao nosso ponto de vista. Ou seja, moldamos os dados para se conformarem aos nossos valores.

Há várias experiências que comprovam esses vícios decorrentes do desejo de confirmação e demonstram que as predisposições mentais podem levar a erros de julgamento por gerar interpretação tendenciosa e memória seletiva no processamento de informações. Em um desses estudos, foi apresentado a dois grupos que tinham posições antagônicas sobre a pena de morte duas pesquisas contraditórias sobre a eficácia da pena de morte para dissuadir a prática de crimes de homicídio. Um dos estudos demonstrava que a pena de morte tinha um efeito positivo na redução dos crimes de homicídio; o outro estudo demonstrava exatamente o oposto. Ao serem instigados a analisar os dados contidos nas duas pesquisas, os membros dos grupos antagônicos tendiam a valorizar mais a pesquisa que apoiava suas crenças e a adotar uma postura crítica em relação à pesquisa contrária. Ou seja, ao invés de realizarem uma leitura imparcial e objetiva dos dados fornecidos, houve uma coleta seletiva das informações e uma predisposição acrítica a aceitar os dados confirmatórios e a hostilizar os dados refutatórios, aumentando ainda mais os desacordos entre os grupos! (O estudo pode ser lido aqui)

Em outro estudo semelhante, foi solicitado que pessoas com posições antagônicas sobre o controle de armas fizessem uma análise imparcial do tema a partir de alguns estudos fornecidos pelos pesquisadores em publicações notoriamente favoráveis ou contrárias a essa questão. Os que eram contra o controle de arma tendiam a procurar as informações nas publicações Pro-Armas e os que eram favoráveis ao controle, por sua vez, tendiam a buscar as informações nas publicações Anti-Armas. O resultado é que, mesmo tendo sido pedido que fosse realizada uma avaliação imparcial, ao final do estudo os participantes estavam ainda mais convictos de suas crenças iniciais! (Sobre isso: aqui)

Parece óbvio que, em questões envolvendo profundas discordâncias políticas, o viés da confirmação tende a se intensificar. Eleitores de um candidato costumam exaltar suas qualidades e a minimizar seus defeitos. Por outro lado, exageram as falhas do candidato adversário e praticamente não enxergam seus méritos. A análise dos dados é enviesada para reforçar as crenças políticas em diversos sentidos: (a) por meio de uma filtragem tendenciosa das informações assimiladas (busca-se o que é bom, evita-se o que é ruim; divulga-se o que é bom, esconde-se o que é ruim); (b) por meio de uma leitura pouco crítica das informações confirmatórias das crenças e exageradamente céticas em relação às informações contrárias às posições políticas; (c) por meio de uma percepção preconceituosa da própria realidade social e econômica, que passa a variar conforme o governo de ocasião; (d) por meio de uma memorização seletiva dos fatos, a fim de favorecer a lembrança de realizações positivas imputáveis ao grupo que apoiamos e o conveniente esquecimento de seus erros, ou então, o esquecimento de realizações positivas do grupo adversário e a lembrança exagerada de seus erros.

Outro problema que pode provocar um grave vício cognitivo decorre das “bolhas ideológicas” que passamos a construir a partir das nossas relações interpessoais. Tendemos a nos aproximar e a simpatizar com mais facilidade das pessoas que pensam como nós e funcionam como alicerces para a confirmação das nossas crenças. Por outro lado, sobretudo quando a polarização ideológica atinge níveis elevados, tendemos a nos afastar daquelas pessoas que pensam diferente e que nos causam desconforto intelectual. Com as redes sociais, esse fenômeno se agravou, pois os algoritmos geralmente incorporados aos programas que filtram as informações que nos chegam adotam critérios baseados em nossos interesses (“curtidas”), e isso, na prática, pode significar uma inundação de informações que apenas confirmam nossas crenças. Isso nos tornará ainda mais polarizados do ponto de vista ideológico em função da chamada heurística da disponibilidade, que nos leva a formar nosso juízo sobre o mundo a partir daquilo que nos é apresentado com mais frequência. Além disso, como são cada vez mais raras as informações antagônicas e menos pessoas no nosso círculo de convivência que pensam diferente, tendemos a subestimar a força (quantitativa e qualitativa) das ideias contrárias às nossas crenças, deixando de levar a sério as diversas perspectivas possíveis. O ponto de vista diferente deixa de ser visto como algo razoável que pode ampliar nossos horizontes para ser tratado como uma ameaça estranha a ser prontamente repelida. Pior ainda: passamos a acreditar que nosso ponto de vista representa um consenso universal, quando, em verdade, o que está havendo é apenas uma eliminação artificial do dissenso, provocado por um sistema tecnológico de seleção de informações que nos envia apenas aquilo que queremos ler. (Sobre bolhas ideológicas: aqui).

O viés da confirmação é responsável por outro fenômeno que também prejudica nossa avaliação do mundo: a chamada “perseverança de crenças”, situação curiosa que nos leva a rejeitar qualquer informação que possa refutar nossas crenças consolidadas. De fato, nossas convicções mais profundas têm a incrível capacidade de persistir mesmo quando são mostradas evidências contrárias que levariam à sua refutação. Temos uma espécie de relação afetiva com nossas crenças. Não gostamos de vê-las enfraquecidas ou destruídas. Criamos mecanismos de defesa mental para salvá-las de qualquer ameaça, inclusive ao ponto de mantê-las vivas mesmo depois terem sido submetidas a um ataque letal.

Há estudos muito interessantes que demonstram que, quando partimos do pressuposto de que um réu é culpado, temos uma grande dificuldade de aceitar as provas em sentido contrário, mesmo que sejam enfáticas em demonstrar a sua inocência. Com frequência, construímos expedientes mentais e argumentativos que confirmem nosso veredicto inicial, ainda que isso resulte em uma desconfiguração completa do acervo probatório existente. Há um custo em reconhecer o erro e poucos estão dispostos a pagar. Uma vez construído um padrão de pensamento, há uma forte resistência em se afastar desse padrão.

E o que tudo isso tem a ver com o título do texto? Em que o conhecimento dessas falhas cognitivas pode ajudar a compreender melhor o “cabeça-dura”?

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que esses vícios do raciocínio nada tem a ver com inteligência ou burrice. Pessoas com elevado desempenho em testes intelectuais também estão sujeitas a cair no viés da confirmação e, portanto, a ter um pensamento enviesado. (Sobre isso: veja aqui).

Na verdade, os atalhos mentais são fruto de um sistema adaptativo e fazem parte indissociável da forma de pensar do ser humano. Na maioria das vezes, eles funcionam bem. Em poucas ocasiões, eles falham e são responsáveis pelos erros cognitivos. Ora, se qualquer pessoa está sujeita a cometer tais erros, fica óbvio que o primeiro passo para lidar com o intransigente é se olhar no espelho. Todos nós estamos sujeitos a cometer erros cognitivos, até porque não controlamos a maior parte daquilo que processamos em nossa mente. A autocrítica, portanto, deve ser constante e intensa. Talvez sejamos nós que devemos pensar e estar dispostos a mudar de lado.

O próximo passo é convencer o outro de que ele também está sujeito a esses erros. Não adianta pedi-lo para avaliar os dados com imparcialidade e objetividade, porque isso pode não ser suficiente e pode até gerar um efeito contrário, na medida em que ele apenas confirmará suas crenças, desta vez convicto de que está fazendo isso de forma imparcial e objetiva.

Do mesmo modo, não peça para que ele justifique as crenças que defende ou indique quais os dados empíricos que ele está levando em conta para chegar àquela conclusão. A justificação das crenças é sempre um processo enviesado, que provoca uma solidificação irreversível dos nossos próprios pontos de vista. Há estudos que demonstram que, quanto mais examinamos uma hipótese teórica e explicamos como ela pode ser verdadeira, mais fechados nos tornamos para informações que desafiam nossas crenças (sobre isso: aqui).

Apresentar dados refutatórios também tem pouco impacto real no convencimento de quem pensa em sentido contrário. O mais provável é que essas informações sejam distorcidas, ignoradas ou ridicularizadas, em razão da predisposição de manutenção das crenças. Como foi dito, dados que ameaçam nossas crenças costumam ser tratados com hostilidade.

Por isso, ao invés de incentivar o outro a justificar suas crenças ou tentar refutá-las, peça-o, pelo contrário, para fazer um exercício mental diferente, atuando como uma espécie de “advogado do diabo” das próprias convicções. Instigue-o a desenvolver os melhores argumentos contrários à própria crença. Deixe que ele próprio reflita sobre os méritos da posição contrária. Vários estudos demonstram que, quando somos incentivados a explicar porque uma teoria contrária pode ser verdadeira, mudamos nossos pontos de vista com mais facilidade (aqui). E, obviamente, faça o mesmo com suas próprias crenças.

Aliás, esse esforço mental pode e deve ser feito em conjunto. Ao invés de olhar para apenas um lado da questão, ajudem-se mutuamente a mapear todos os argumentos favoráveis e contrários, fortes e fracos, honestos e desonestos, que possam ser apresentados naquele debate. Isso facilitará a identificação dos verdadeiros pontos de discórdia e talvez ajude a superar a hostilidade mútua, na medida em que o ponto de vista contrário será tratado com mais simpatia (ou, pelo menos, com menos ódio).

Por outro lado, se nenhum dos debatedores estiver disposto a fazer o exercício acima, é melhor desistir do diálogo, pois nada fará com que alguém intransigente mude de lado, já que estamos todos sujeitos ao viés da confirmação e vamos continuar dando atenção apenas às informações que reforcem nossas crenças. Mesmo que acreditemos honestamente que nossos juízos são imparciais e objetivos, tenderemos a analisar os dados com um olhar enviesado. E mesmo que acreditemos que somos tolerantes, tenderemos a criar bolhas ideológicas para incluir apenas os que estão conosco e excluir as pessoas que pensam diferente. Quando isso ocorre, é o primeiro sinal de que estamos nos fechando em uma rede hermética de crenças e caminhando para um dos extremos dos pólos, tornando-nos tão intransigentes quanto aqueles que acusamos de serem intransigentes.

Fonte:

Vários foram os livros lidos para se chegar as informações acima. O principal foi o livro “Psicologia Social”, de David Myers.

Dupla Maternidade Biológica: é possível?

Um amigo enviou-me uma sentença sobre um caso bastante interessante, que envolve questões de direito de família, registro público, bioética e direito constitucional. É uma situação peculiar, por várias razões. Em primeiro lugar, é um caso de dupla maternidade, o que, por si só, já seria intrigante. Porém, para tornar o caso ainda mais curioso, as duas mães participaram diretamente do processo de gestação da criança.

No caso, duas mulheres que viviam em união homoafetiva, posteriormente convertida em casamento, resolveram ter um filho. Para isso, recorreram à técnica de fertilização “in vitro” em que uma das mães forneceu os óvulos (fecundados com o sêmem de um doador anônimo) que, posteriormente, foi implantado no útero da outra mãe.

O debate jurídico girou em torno da possibilidade de registrar as duas mães como genitoras da criança, o que foi deferido pela juíza da 2ª Vara de Registros Públicos de Fortaleza.

A sentença segue abaixo, com a exclusão dos nomes para preservar a privacidade dos envolvidos.

SENTENÇA

Vistos, etc.

FULANA DA SILVA e SICRANA DA SILVA, através da Defensoria Pública Estadual, ajuizaram “Ação Declaratória de Filiação para Averbação em Certidão de Nascimento”, pleiteando que seja acrescentado, no registro de nascimento do menor BELTRANO DA SILVA, o nome da outra genitora (Fulana da Silva) e dos avós maternos, expedindo-se, para tanto, mandado ao oficial do Cartório para as devidas anotações.

Alegam as requerentes que convivem maritalmente (união estável) há cerca de seis (6) anos e, recentemente (05 de abril de 2013), contraíram matrimônio (certidão de casamento anexa), com o claro objetivo de constituir uma família. Nesse passo, buscando realizar o sonho de se tornarem mães, recorreram à técnica da fertilização “in vitro”, no Centro de Medicina Reprodutiva – BIOS, na qual a Sra. Fulana da Silva forneceu os óvulos, que foram fecundados por sêmen de um doador anônimo, posteriormente, implantados no útero da Sra. Sicrana, tornando-se gestante e genitora.

Afirmam que, no dia 13 de abril de 2013, a Sra. Sicrana deu à luz ao menor Beltrano da Silva (conforme Declaração de Nascido Vivo) e, sendo manifesta a urgência na feitura do assento de nascimento, o infante foi registrado apenas com o nome da parturiente, na condição de mãe, remanescendo em aberto a verdade biológica no tocante à filiação da criança.

Prosseguem afirmando que a verdade biológica do menor Beltrano da Silva está devidamente esclarecida através do procedimento da fertilização “in vitro”, haja vista que a Sra. Sicrana recebeu os óvulos da Sra. Fulana (fecundados por sêmen de doador anônimo), dando a luz a uma criança, cuja herança genética é da sua companheira (cônjuge), tendo o direito, portanto, a figurar também no assento de nascimento do menor, na condição de mãe.

Às fls. 35/36, parecer da representante do Ministério  Público, opinando pela incompetência absoluta deste juízo, haja vista que o “reconhecimento judicial de dupla maternidade” seria matéria relativa a  uma das varas de família, a quem caberia solucionar as situações de fato, principalmente quando se trata de assunto ainda não legislado, nada obstante já enfrentado pela doutrina e pela jurisprudência.

Inicialmente, cumpre esclarecer que, no caso vertente, não se controverte acerca da titularidade materna do menor Beltrano da Silva. Não há conflito de interesses entre as promoventes acerca da maternidade, estando ambas de acordo com o pleito formulado na inicial. Trata-se, portanto, de ação de jurisdição voluntária, no qual inexiste dúvida factual que demande qualquer investigação. Sendo assim, reconhecendo interesse estritamente registrário, consistente na necessidade de anotar no Livro ‘A’, do Registro Civil de Nascimento de Pessoas Naturais, a realidade biológica da criança, no tocante à filiação materna, firmo a competência desse juízo para processar e julgar o presente feito.

No mérito, forçoso convir que o pleito comporta acolhimento, haja vista que, evidenciado o vínculo de filiação (herança genética) e presente a “entidade familiar” (união estável / casamento) entre pessoas do mesmo sexo, como sucede na hipótese dos autos, estará assegurada a realidade registrária, tendo a mãe biológica o direito de integrar o assento de nascimento do menor, na condição de genitora.

A existência de relações públicas e estáveis entre pessoas do mesmo sexo é uma realidade da qual o direito não escapa de lidar, cabendo ao Poder Judiciário o enfrentamento da questão, com profundidade e sem preconceitos.

No caso, o ponto controvertido cinge-se a possibilidade de anotação, no registro de nascimento de menor, de dupla maternidade (duas mães), invocando os direitos conferidos à família homoafetiva (união estável / casamento – entre duas pessoas do sexo feminino – parturiente e mãe biológica), devendo o julgador está atento a um conjunto de direitos constitucionalmente reconhecidos: às autoras, o direito constitucional à família; à criança, o direito fundamental à identidade e à ampla proteção e segurança.

O Poder Judiciário tem sido sensível às mudanças sociais, tendo o Supremo Tribunal Federal, recentemente, explicitado o tratamento constitucional da instituição da família, ressaltando pouco importar “se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos”, proclamando, portanto, a isonomia entre casais heteroafetivos e homoafetivos que, na conformidade do entendimento da Suprema Corte, “somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família” (ADI 4277/DF, DJ 14/10/2011, Relator Ministro Ayres Brito).

A referida Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4277/DF (encampando os fundamentos da ADPF 132/RJ, Relator Ministro Ayres Brito) foi julgada procedente, com eficácia “erga omnes” e efeito vinculante, para “dar ao artigo 1.723, do Código Civil interpretação conforme à Constituição, para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família’”.

Assim, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, assegurando aos casais do mesmo sexo os mesmos direitos e deveres dos pares heterossexuais, já restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal e a conversão da união homoafetiva estável em casamento (como no caso dos autos) já foi reconhecida no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.

A doutrina, por sua vez, também aponta mudanças na concepção de família, cuja importância institucional cedeu lugar à idéia de ambiente próprio para o desenvolvimento e a expansão da personalidade de seus membros, ressaltando-se a relevância do afeto na construção das relações (FACHIN, Rosana Amara Girardi. Em busca da família no novo milênio, Renovar, p. 66). Deixou-se de lado a proteção da família como um fim em si mesma, encarando-a como um meio de permitir, a cada um de seus integrantes, sua realização como pessoa, em ambiente de comunhão, suporte mútuo e afetividade (SARMENTO, Daniel. Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo: perspectivas constitucionais, Lumen Juris, p. 641)

O Estado brasileiro tem o dever de proteger a criança, assegurando-lhe o direito fundamental à identidade e à segurança. Não pode, portanto, restringir a anotação registral, quando evidenciado o vínculo de filiação ao casal homoafetivo, realidade encontrada na sociedade atual, desde que, comprovadamente, como no caso dos autos, possua convivência familiar estável (união estável convertida em casamento).

No mesmo sentido, já decidiu o MM. Juiz de Direito da 2ª. Vara de Registros Públicos de São Paulo, Márcio Martins Bonilha Filho, acrescentando: “noto, ainda, que independentemente do reconhecimento judicial da dupla maternidade pretendida, a criança será criada pelas duas requerentes. As duas serão suas mães de fato e, quando aprender a falar, certamente chamará as duas de mãe. A dupla maternidade, portanto, ocorrerá de qualquer forma no mundo fático”. E, em arremate, consignou: “O juiz de nosso século não é um mero leitor da lei e não deve temer novos direitos. Haverá sempre novos direitos e também haverá outros séculos. Deve estar atento à realidade social e, cotejando os fatos com o ordenamento jurídico, concluir pela solução mais adequada” [sentença publicada pela Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo, disponível online].

Dessa forma, a duplicidade em relação à maternidade, nos termos pretendidos pelas autoras, não constitui óbice ao registro civil de nascimento da criança, até porque se encontra consolidado, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento segundo o qual é plenamente possível o procedimento de adoção por pessoas (casal) com orientação homoafetiva.

Em síntese, como ressaltado anteriormente, na sociedade atual, o formato das famílias se alterou por demais e os filhos de casais homoafetivos fazem parte dessa evolução. Assim, cada família e suas crianças se ajustarão ao mundo de acordo com suas experiências e suas próprias características. Não existe receita para convivência familiar de forma harmônica e saudável.

Diante do exposto, julgo procedente o pedido, determinando a averbação, no assento de nascimento de Beltrano da Silva, da maternidade de Fulana da Silva, ordenando, outrossim, a inserção no referido assento dos outros avós maternos. Após o trânsito em julgado, expeça-se o competente mandado.

Cumpridas as providências de estilo e nada mais sendo requerido, arquivem-se os autos com baixa na distribuição.

Sem custas.

P.R.I.

Fortaleza – CE, 10 de fevereiro de 2014.

SÍLVIA SOARES DE SÁ NÓBREGA

Juíza de Direito da 2ª . Vara dos Registros Públicos

A Âncora da Mente: o efeito da ancoragem no arbitramento do dano moral

No último post, comentei que existem diversas pesquisas científicas que ajudam a entender a mente dos julgadores a partir da análise de casos envolvendo o arbitramento de dano moral. Alguns desses estudos foram comentados pelo psicólogo social e prêmio Nobel de economia Daniel Kahneman, no seu livro “Pensar, depressa e devagar” (na edição brasileira: “Rápido e Devagar – duas formas de pensar”). São pesquisas muito interessantes, em particular, as que envolvem o efeito da ancoragem na tomada de decisões.

O efeito da ancoragem é produzido a partir da inclusão de uma discreta sugestão numérica no problema a ser resolvido. Considere, por exemplo, as seguintes perguntas: (1ª) quanto você estima que é o custo unitário de um processo de execução fiscal? (2ª) em sua estimativa, o custo unitário de um processo de execução fiscal é superior ou inferior a R$ 20.000,00? Quanto seria esse custo? (3ª) em sua estimativa, o custo unitário de um processo de execução fiscal é superior ou inferior a R$ 1.000,00? Quanto seria esse custo?

Conforme se pode notar, a primeira pergunta não contém nenhuma ancoragem, ao passo que, na segunda e na terceira, foram incluídos valores estimativos, que funcionam como um parâmetro capaz de influenciar a resposta a ser apresentada. Certamente, um questionário contendo apenas a primeira pergunta resultará em números bastante diferentes de um questionário contendo apenas as segundas e terceiras perguntas. Provavelmente, o valor estimado do segundo questionário será superior ao valor estimado do terceiro questionário, apesar de a pergunta central ser exatamente a mesma.

Fica fácil perceber como isso pode afetar o arbitramento do dano moral. Analise agora as seguintes perguntas: quanto deve ser o valor da indenização em caso de tortura policial? O valor deve ser superior ou inferior a R$ 200.000,00? O valor deverá ser superior ou inferior a R$ 50.000,00? A depender da forma como a pergunta for elaborada, o valor poderá aumentar ou diminuir.

Nos Estados Unidos, há um grande debate em torno dos elevados valores de indenização por dano moral. As grandes corporações tremem diante de uma ação de indenização. Há, inclusive, um forte lobby visando estabelecer tetos indenizatórios nas ações judiciais. Aqui no Brasil, também há projetos de lei no mesmo sentido, embora exista uma jurisprudência pacificada no sentido da inconstitucionalidade do tarifamento do dano moral. De qualquer modo, não custa perguntar: estipular um limite máximo para o valor da indenização aumentará ou diminuirá o valor das condenações pecuniárias?

Há estudos que demonstram que o efeito de ancoragem do teto indenizatório evita eventuais condenações estratosféricas, mas aumenta o montante do valor da condenação em situações em que a indenização  seria pequena em relação ao teto. Assim, um teto de um milhão de reais produziria o efeito de ancoragem para cima nos casos banais. Por outro lado, em situações muito graves, o juiz não poderia dosar o montante da indenização, salvando a empresa de um grande prejuízo mesmo diante de uma grave violação dos direitos de personalidade da vítima. Desse modo, pequenas empresas que causaram pequenos danos morais seriam mais prejudicadas do que as grandes empresas que causaram grandes danos morais. (Para acessar o estudo, clique aqui).

Por fim, vale ressaltar que existem técnicas para evitar o efeito provocado pela ancoragem. Os psicólogos Adam Galinsky e Thomas Mussweiller, por exemplo, sugerem que o efeito da ancoragem pode ser reduzido se forem criados expedientes mentais para anular a sugestão causada pela âncora. Se o propósito da âncora for elevar o valor para cima, é preciso pensar no valor mínimo que seria aceitável. Se o propósito da âncora for elevar o valor para baixo, o raciocínio se inverte. Ou seja, devemos tentar perceber a ilusão causada pela âncora e refletir conscientemente com nossa própria cabeça, tentando neutralizar os efeitos a partir de nossa própria percepção e experiência.

Como defende Daniel Kahneman, mesmo que sejamos influenciados por diversos fatores inconscientes que não podemos evitar, também temos instrumentos cerebrais para “sair do automático” e “pensar devagar”.

Ainda os ETs

A discussão sobre o reconhecimento de uma eventual dignidade aos extraterrestres, sugerida pelo Mairton, é bem interessante, pois nos induz a pensar nos direitos de pessoas “não humanas”, desenvolvendo uma perspectiva expansiva da dignidade humana. Vamos agora mudar o foco e colocar os extraterrestres no banco dos réus. A passagem abaixo foi extraída do livro “Quem sou eu? E, se sou, quantos sou?”, do filósofo Richard David Precht, que recomendo enfaticamente. Se tocar na alma, é capaz de mudar hábitos. Confiram:

“Imagine que, certo dia, seres estranhos do universo chegam ao nosso planeta. Seres como os do filme Independence Day. Eles são inacreditavelmente inteligentes e muito superiores aos seres humanos. Como não há sempre um corajoso presidente americano num avião de combate à disposição, e desta vez nenhum gênio incompreendido para infectar os computadores extraterrestres com vírus terrestres, os seres estranhos venceram e aprisionaram a humanidade em pouco tempo. Inicia-se um período de terror sem igual. Os extraterrestres usam os seres humanos para experiências médicas, fazem sapatos, bancos de carros e cúpulas de luminárias com sua pele, aproveitam seus cabelos, ossos e dentes. Além disso, comem os humanos, principalmente as crianças e os bebês, que são os mais apreciados por sua carne tenra e macia.

Um humano, que está sendo retirado de seu confinamento para uma experiência médica, berra para os extraterrestres:

– Como vocês podem fazer uma coisa dessas? Vocês não veem que temos sentimentos, que você estão nos machucando? Como vocês conseguem pegar nossas crianças, matá-las e comê-las? Vocês não percebem como são inacreditavelmente cruéis e bárbaros? Será que vocês não têm nenhuma compaixão e nenhuma moral?

Os extraterrestres assentem com a cabeça.

– Sim, sim – diz um deles. – pode ser que sejamos um pouco cruéis. Mas, vejam – continua -, somos superiores a vocês. Somos mais inteligentes e razoáveis, sabemos uma porção de coisas que vocês não sabem. Fazemos parte de uma espécie muito superior, uma existência num nível totalmente diferente. E por essa razão podemos fazer tudo que queremos com vocês. Comparada com a nossa, a vida de você quase não tem valor. Além disso, mesmo que nosso comportamento não seja muito adequado, uma coisa é certa: vocês são tão apetitosos!” (PRECHT, Richard David. Quem sou eu? E, se sou, quantos sou?. São Paulo: Ediouro, 2009, pp. 178/179).

Quando li a passagem acima, pensei em uma outra versão para o final. Na verdade, possivelmente, dada a superioridade cerebral dos ETs, a linguagem deles seria muito mais complexa do que a nossa. Dificilmente, os humanos conseguiriam estabelecer uma comunicação plena porque suas palavras pareceriam, aos ouvidos dos ETs, meros latidos, grunidos ou miados. Nossos gritos de revolta e de indignação seriam percebidos pelos ETs como os “cocoricós” de um frango sendo abatido. Então, provavelmente, quando o ser humano pergutasse ao extraterrestre se ele não teria moral, a resposta seria algo mais ou menos assim: “que barulho chato a desse bichinho inferior. Temos que pensar em uma solução para diminuir tanto grito”.

O Habeas Corpus dos Extraterrestres – de Marcos Mairton

O texto abaixo é de autoria do colega Marcos Mairton, autor da música “Coração de Frango”. Já havia lido, na semana passada, o seu saboroso livro “Os Mistérios dos Monólitos de Quixadá”, em que ele narra, em cordel, sua versão para os misteriosos blocos de pedras que existem no município de Quixadá-CE. O texto abaixo, por sua vez, tem um tom mais jurídico, baseado em um hipotético habeas corpus impetrado por extraterrestres. Embora a situação seja inusitada, é óbvio que ela pode ser objeto de muitas especulações jurídicas e filosóricas mais sérias. Aliás, o respeitado jurista Robert Alexy já escreveu alguns textos abordando a possibilidade de se reconhecer o status de pessoa a robôs. Isso sem falar no debate riquíssimo sobre a titularidade de direitos fundamentais por animais não-humanos. No fundo, o debate compreende uma proposta expansiva do conceito de pessoa dotada de dignidade e, por isso, pode ser aplicada a vários grupos de seres humanos e não-humanos, cuja dignidade não é reconhecida pelo direito contemporâneo.

Enfim, o texto é legal e merece uma reflexão. O que acham os leitores?

O habeas corpus dos extraterrestres

Os relatos de aparições de OVNIS em Quixadá não são poucos nem recentes. Só para dar um exemplo bem conhecido, no dia quatro de junho de 1960, a escritora Rachel de Queiroz narrou, na sua coluna em “O Cruzeiro”, um avistamento presenciado por ela mesma no dia 13 de maio daquele mesmo ano. Diz a escritora: “(…) aquela luz com o seu halo se deslocava horizontalmente, em sentido do leste, ora em incrível velocidade, ora mais devagar. Às vêzes mesmo se detinha; também o seu clarão variava, ora forte e alongado como essas estrêlas de Natal das gravuras, ora quase sumia, ficando reduzido apenas à grande bola fôsca, nevoenta. (…). Tinha percorrido um bom quarto do círculo total do horizonte, sempre na direção do nascente; e já estava francamente a nordeste, quando embicou para a frente, para o norte, e bruscamente sumiu, – assim como quem apaga um comutador elétrico“.

Às vezes o assunto fica meio esquecido, mas sempre volta. Ultimamente, com a exibição do filme “Área Q”, voltou com força total. No filme, um repórter americano é enviado a Quixadá, para fazer uma matéria sobre OVNIs e abduções. No decorrer da trama, ele mesmo vive experiências cercadas de mistério, as quais estão relacionadas com o desaparecimento do seu filho ocorrido meses antes.

Com esse retorno do assunto às telas dos cinemas – e sabendo que nos arredores de Quixadá encontram-se desde pessoas que simplesmente viram luzes no céu até gente que perdeu o juízo depois de ser abduzida – não será de admirar se qualquer hora dessas for ajuizado algum habeas corpus cuja petição seja redigida mais ou menos assim:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA 23ª VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO CEARÁ

JOSÉ DE TAL (qualificação), vem respeitosamente à presença de V.Exa. impetrar o presente HABEAS CORPUS PREVENTIVO, o que faz com fundamento no inciso LXVIII do Art. 5º da Constituição Federal, em favor de três pacientes cuja qualificação neste momento não é possível, identificando-se, atualmente, apenas como Sócrates, Platão e Aristóteles, nomes que adotaram neste Planeta Terra, apontando como autoridades coatoras o Superintendente da Polícia Federal no Ceará, o Delegado de Polícia Civil de Quixadá, o Comandante da Polícia Militar em Quixadá e o Comandante do Tiro de Guerra de Quixeramobim-CE.

I – DOS FATOS

Há aproximadamente um ano os Pacientes vêm mantendo contato regularmente com o Impetrante, mediante comunicação telepática, tendo eles se identificado como seres de outro planeta, interessados em trocar experiências com os habitantes deste Planeta Terra, notadamente os da espécie homo sapiens.

Durante esse período, o Impetrante e os Pacientes têm aperfeiçoado sua comunicação, possibilitando ao Impetrante aprender sobre eles e também ensinar-lhes coisas sobre o nosso planeta. Os Pacientes até já aprenderam um pouco do idioma português, pois têm interesse em conversar com outras pessoas que não o Impetrante, mas, segundo eles, nem todos os homo sapiens estão aptos à comunicação telepática.

Ocorre que, por tudo o que os Pacientes já aprenderam sobre a Terra e seus habitantes, têm eles grande e justificado receio de, em se apresentando clara e abertamente para as pessoas, virem a sofrer cerceamento de sua liberdade, sendo arbitrariamente aprisionados, submetidos a experimentos ditos científicos e tratados como animais irracionais, especialmente porque sua aparência física não guarda muitas semelhanças com a dos homo sapiens.

Em razão disso, e considerando que dentro de no máximo um mês pretendem voltar à Terra e se apresentar de forma ostensiva para os habitantes deste Município de Quixadá, o presente habeas corpus é impetrado com a finalidade de garantir que os Pacientes possam cumprir pacificamente sua missão em nosso planeta, sem ter cerceado o seu direito de ir e vir, não sendo aprisionados, seja em delegacias ou presídios, nem tampouco em laboratórios ou zoológicos.

II – PRELIMINARMENTE: DA COMPETÊNCIA

A competência para processar e julgar o presente habeas corpus é da Justiça Federal, uma vez que, não tendo os pacientes cometido qualquer crime, a sua eventual prisão seria equiparada à do estrangeiro irregular, para fins de deportação.

Essa prisão está prevista no art. 61 da Lei 6.815/80, o qual dispõe que a mesma pode ser decretada pelo Ministro da Justiça. Entretanto, a jurisprudência está pacificada no sentido de que, desde o início da vigência da Constituição de 1988, a competência para expedir o decreto de prisão é da Justiça Federal, uma vez que deve emanar de autoridade judiciária, em face da garantia constitucional segundo a qual ninguém será preso senão em flagrante delito, por ordem judicial competente, ou nos casos de transgressão ou crime militar (art. 5º, LXI).

A contrario sensu, no caso de prisão da espécie sem ordem judicial, a competência para apreciar o habeas corpus contra ela impetrado é também da Justiça Federal.

III – DO CABIMENTO DO PRESENTE HABEAS CORPUS EM FAVOR DOS PACIENTES

Apesar de a literalidade do caput do art. 5º da Constituição Federal se referir a “brasileiros e estrangeiros residentes no país”, a doutrina já esclareceu que os Direitos Fundamentais reconhecidos em nosso ordenamento jurídico alcançam os estrangeiros que estejam no país apenas de forma transitória.

No presente caso, também estrangeiros são os Pacientes, logo, protegidos pelos mesmos direitos e garantias. Entretanto, é real o risco de as Autoridades Impetradas negarem essa condição aos pacientes, partindo da falsa premissa de que, tendo os Direitos Fundamentais como núcleo a dignidade da pessoa humana, somente os membros da espécie homo sapiens mereceriam sua proteção.

Essa noção, entretanto, é equivocada. O Direito não se submete a critérios meramente biológicos. Como destaca RADBRUCH, ninguém é “pessoa” por natureza, originariamente, e bastaria a experiência da escravidão para demonstrar isso.

De fato, as lições do passado – quando o Direito excluiu homens e mulheres da condição humana – ensinam que a redução do conceito de humanidade conduz ao cometimento de atrocidades. Da mesma forma, a ampliação desse conceito favorece a Justiça e a Democracia.

Importa, portanto, destacar a visão de JOHN LOKE, ao definir “pessoa” como “um ser pensante, inteligente, dotado de razão e reflexão, e que pode considerar-se a si mesmo como um eu, ou seja, como o mesmo ser pensante, em diferentes tempos e lugares“. Ou de PETER SINGER, quando cita JOSEPH FLETCHER para apontar os seguintes “indicadores de humanidade“: autoconsciência, autodomínio, sentido de futuro, sentido de passado, capacidade de se relacionar com os outros, preocupação com os outros, comunicação e curiosidade.

É evidente que um indivíduo da espécie homo sapiens que tenha perdido (ou não tenha adquirido) essas características continua sendo uma pessoa humana. Também não se pretende defender aqui que animais como chimpanzés ou golfinhos, por serem dotados dos indicadores acima, são seres humanos.

A questão que se impõe é o reconhecimento de que, se o indivíduo é membro de uma espécie que tem entre suas características esses indicadores de humanidade e, além disso, a capacidade de reconhecer um ordenamento jurídico e se guiar por ele, esse indivíduo deve, sem sombra de dúvida, ter sua dignidade respeitada, tanto quanto qualquer membro da espécie homo sapiens, independentemente do planeta de onde tenha vindo.

Forçoso reconhecer, portanto, que os Pacientes devem receber a proteção dos Direitos Fundamentais acolhidos pela Constituição Federal, notadamente o Direito à Liberdade, de modo que qualquer ato tendente à sua prisão, fora das hipóteses do art, 5º, LXI, seria contrário à Constituição.

No presente caso, nem mesmo a prisão do estrangeiro para fins de deportação (art. 61, Lei 6.815/80) seria cabível, uma vez que, segundo pacífica jurisprudência, tal prisão é ensejada por indícios de que, em liberdade, o deportando tentaria se furtar à ação das autoridades. Afinal, os próprios Pacientes tem interesse em agir em cooperação com as autoridades locais, a fim de melhor cumprir sua missão neste planeta.

A razão deste habeas corpus é apenas evitar que os Pacientes tenham os seus direitos mais básicos desrespeitados.

IV – DO JUSTO RECEIO

O receio dos pacientes se justifica pelo histórico de casos não esclarecidos de extraterrestres vindos à Terra que foram aprisionados e tratados desumanamente, como no caso ocorrido na cidade de Varginha-MG, em 1996.

No referido caso, somente em outubro de 2010 veio a público o resultado do Inquérito Policial Militar que investigou os fatos, apresentando a conclusão de que, segundo o Exército, o ET nunca existiu. As testemunhas teriam visto um homem agachado perto de um muro, sendo “mais provável a hipótese de que este cidadão, estando provavelmente sujo, em decorrência das chuvas, visto agachado junto a um muro, tenha sido confundido, por três meninas aterrorizadas, com uma ‘criatura do espaço’“.(Revista Isto É, Edição 2136, 15.10.2010).

Vossa Excelência não acha estranho que uma versão tão simples dos fatos tenha demorado quase quinze anos para ser apresentada ao público? Os Pacientes têm a sua própria versão para o caso. Embora não seja recomendável revolver os fatos em busca de provas na via estreita do habeas corpus, a nebulosidade das informações divulgadas é suficiente para os Pacientes terem receio quanto ao tratamento que receberão das autoridades brasileiras.

V – DO PEDIDO

Pelos fundamentos apresentados, requer o Impetrante:

– Sejam as Autoridades Impetradas, indicadas no preâmbulo deste, notificadas para apresentar suas informações.

– Seja intimado o Ilustre Representante do Ministério Público para que integre a presente lide.

– Seja concedida a ordem de habeas corpus requerida, com a conseqüente expedição de Salvo-Conduto, evitando a concretização da ameaça ao direito de locomoção dos pacientes.

Nestes termos,

Pede Deferimento.

 

Fonte: Migalhas